Quando a ‘consciência’ se torna uma senzala

Por

Jénerson Alves*

Em 20.11.2020

Celebrado em 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra é, em tese, um momento para refletir sobre o racismo e  o preconceito. A data foi escolhida em alusão à morte de Zumbi, um líder sobre o qual pouco se sabe. As poucas informações acerca da vida do quilombola e a ausência de um legado palpável são tratados como de somenos importância por aqueles que valem-se da efeméride para apregoar visões ideológicas. Ao invés de um debate sobre problemas reais, por vezes, a data se transforma em uma mera cantilena de jargões inúteis, ideologizados, que em pouco (ou nada) contribuem com o debate público.

Quando sobram discussões vagas, faltam espaços para reflexões. Sem um aprofundamento de conteúdo, a tal da “Consciência Negra” se transforma em uma senzala ideológica, na qual um coletivismo desesperado ‘engole’ as individualidades. Neste cenário, intelectualidade e linguagem são lançadas no lixo – um fenômeno que não é raro e já fora estudado minuciosamente pelo filósofo germano-americano Eric Voegelin.

Concordo com o professor Paulo Cruz, o qual afirma que, se há de ter um ícone para o movimento negro do Brasil, mais assertiva escolha seria a de André Rebouças. Mentor do abolicionismo, Rebouças sentia grande pesar pela condução do processo abolicionista no Brasil, bem como pelos desdobramentos dela provenientes. Em uma carta endereçada a Joaquim Nabuco, Rebouças comentou sobre o aniversário da abolição desta forma: “A 13 de maio de 1889 eu tive uma tristeza inexplicável. Lembra-se que foi necessário telegrama para tirar-me do meu isolamento de Petrópolis… Na tarde de 22 de agosto de 1888, quando voltávamos da faustosa e hipocrita recepção do Imperador, eu lhe disse ao ouvido: ‘agora posso dormir tranquilo…’ Parecia-me que, a todo o momento, os escravocratas assassinavam a princeza redentora e cubriam de sangue a página santa, que havíamos escrito durante oito longos anos…”.

Bem sabemos que, como foi conduzida, a abolição da escravatura no Brasil gerou uma multidão de famélicos, que foram marginalizados da sociedade. As senzalas materiais pariram favelas, e um abismo praticamente intransponível se gerou entre os ‘brasis’. Todavia, talvez o que tem sido apresentado como remédio apenas prolonga a ferida, ao invés de saná-la. Os discursos daqueles que se autoproclamam ‘do bem’ são, muitas vezes, tomados por um ódio cego e militante. Analisando este tipo de fenômeno, o filósofo romeno Gabriel Liiceanu disse: “(…) o ódio tornou-se impessoal à medida que nem o que odeia é uma pessoa isolada (mas membro de um grupo, de uma organização, de um partido, de um ‘movimento’ etc. Nem o que é odiado é isolado, mas pertence a uma categoria (de classe, de raça, de nação, de religião)”.

Fujamos da militância do ódio e voltemos os olhos para Rebouças. Ele bem dissera que a escravidão não seria derrotada por intermédio de “utopias socialistas nem de violências”, mas pelo trabalho, pela cultura e pelo esforço. É possível que esta seja uma das maiores lições que podemos tirar para o tempo presente. Não será o ‘movimento negro’ que salvará o negro das grades do preconceito, mas uma emancipação de negros em movimento.

Cabe, portanto, lembrar do que já nos ensinara outro negro: Santo Agostinho. O Bispo de Hipona dizia que há uma lei existencial para a vida em sociedade (vita socialis): o amor (charitas). Para Agostinho, “o amor fraterno é o que nos faz amar uns aos outros. Este amor não somente vem de Deus, mas é Deus. Portanto, quando por amor amamos o próximo é por Deus que o amamos. É impossível que nós não amemos o próprio amor; pelo qual nós amamos os irmãos. Porque Deus é amor, necessariamente quem ama a Deus, ama seu irmão” (De Trin., VIII, 12; IX, 10).

Este amor é a essência que alimentou homens como Rebouças, Luther King e Dom Hélder Câmara. Que possamos beber da mesma fonte e exalar da mesma seiva, para libertarmo-nos da senzala ideológica e experimentarmos a liberdade do amor. Neste dia, a consciência não terá cor: será transparente como o rio da água da vida.

*Jénerson Alves é jornalista e membro da Academia Caruaruense de Literatura de Cordel. Escreve às sextas-feiras.

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