JOVENS AUTORES – O epitáfio de Ícaro

Por

Matheus Henrique Soares N. da Silva*

Em 20.11.2020

As portas do laboratório se abriram em um supetão. O velho corcunda entrou carregando em mãos um punhado de flores brancas. Ele mancava um pouco, arrastando a perna esquerda pelo chão alguns segundos antes de conseguir levantar o pé e dar um passo. O senhor se dirigiu à única cama do térreo do prédio, onde uma figura magra e esguia repousava. Seu braço estava imobilizado em uma posição estranha sobre seu peito, que subia e descia em um ritmo doentio. O rosto e os braços bronzeados do jovem deitado estavam poluídos por arranhões e manchas arroxeadas. O senhor depositou as flores brancas na bancada ao lado da cama e limpou calmamente o sangue que já sujava o branco encardido das ataduras velhas.

“Ícaro, fique comigo.” O senhor era um renomado inventor no local onde estavam. Genial ao ponto de, por seus talentos, ter sido aprisionado para trabalhar a mando do rei por toda uma vida. Ele havia criado de tudo durante seus anos em cárcere. Estátuas que chegavam a ser mais humanas do que o próprio modelo em que eram inspiradas; labirintos e armadilhas que mesmo os heróis das histórias temeriam em enfrentar; e dois pares de asas que os permitiriam fugir daquela ilha. Dédalo trabalhou nelas por meses, usando nada mais que cera de velas e as penas dos pássaros que descansavam suas asas na costa da ilha antes de seguir suas rotas de migração.

O jovem abriu os olhos pesados e virou a cabeça em direção à voz de seu pai. Seu olhar parecia muito mais velho que seus quinze anos de vida, carregando uma maturidade que Dédalo sabia ser nova. Uma maturidade que tinha beijado seus pensamentos há menos de uma semana, quando tudo aconteceu. Eles haviam chegado perto. As asas foram testadas diversas vezes durante as semanas que antecederam a verdadeira fuga. Nenhum erro havia sido notado. Todos os cálculos foram feitos e refeitos dezenas de vezes, mas nada o prepararia para a espiral de catástrofes que se seguiu durante aqueles curtos minutos.

Ele viu as penas voando ao vento e indo de encontro ao mar pelo canto dos olhos

Eles alçaram voo durante a manhã, com medo de que criaturas poderiam espreitar no ar frio e cortante da noite. Era para a proteção deles. Dédalo deixou que Ícaro voasse alto junto aos pássaros como ele mesmo já havia feito diversas vezes, nas tardes que passaram treinando. A luz de Apolo estava quente e parecia impregnar as suas peles com calor. Dédalo não foi rápido o suficiente quando percebeu o que estava prestes a acontecer. Ele viu as penas voando ao vento e indo de encontro ao mar pelo canto dos olhos, mas perdeu o momento em que Ícaro desceu em direção aos arrecifes, abraçado pelas asas quebradas como se em busca de algum conforto. Quem quer que o visse em queda, em direção à assombrosa estrutura rochosa, juraria ter visto uma única harpia perdida de suas irmãs.

Dédalo o resgatou pouco tempo depois, o carregando nas costas e voltando para sua prisão. Ele clamou por ajuda ao barco que visitava a ilha todas as manhãs; rezou a Zeus e a Apolo, pedindo desculpas por ter contaminado o céu deles com sua mera presença mortal, mas ninguém o respondeu. Ele tratou de Ícaro como pôde, ficando feliz com o fato que o filho ainda compartilhava de curtos momentos de lucidez antes de desmaiar em dor e agonia. As opções já eram escassas, e cada dia parecia minar o pouco de esperança que ainda podia ser nutrida.

Dédalo levou seus dedos velhos ao bolso de seu macacão surrado, tirando de dentro um único bloco dourado do tamanho de um cubo de açúcar. Ele havia passado horas do dia anterior negociando com as sombras que se alastravam pela pacata ilha. Ele fez promessas pelas quais se arrependeria por séculos e assinou contratos que sabia que não poderia cumprir. Uma vida por uma vida, era a regra de Asfódelos. Dédalo viveria enquanto seu conhecimento e criações fossem usadas para o mal e, em troca, ele receberia uma única chance de salvar o fio da vida de seu filho que perdia luz a cada hora que passava, fora esse o acordo proposto pela Estrela Celeste do Heroísmo, Aiacos.

Contudo, por ser um alimento digno de poucos, a ambrosia não podia ser consumida por qualquer mortal, sendo venenosa para todos os que não fossem abençoados com a sorte dos deuses.

O único pedaço de ambrosia parecia reluzir quando tocada pela luz do sol. O alimento sagrado era conhecido em todo o Mar Egeu por suas propriedades curativas, sendo capaz de quase trazer de volta do Hades quem quer que a ingerisse, mantendo a pessoa viva por anos antes que outro pequeno pedaço precisasse ser consumido. Contudo, por ser um alimento digno de poucos, a ambrosia não podia ser consumida por qualquer mortal, sendo venenosa para todos os que não fossem abençoados com a sorte dos deuses. Os não dignos tinham sua vida estendida, mas eram mantidos em dor intensa, sem nunca receber a dignidade de morrer. Era um risco, Dédalo sabia, mas era a única solução que restava.

“Ícaro, preciso que abra a boca.” Dédalo levou o pequeno bloco lentamente até os lábios de seu filho, tomando cuidado para não se apoiar em nenhum local que pudesse causar mais dor a ele.

“Pai, o que você fez?” A voz de Ícaro saiu arranhada, como se tivesse gritado por muito tempo. “O que você deu em troca disso?”

“Não importa, filho. Coma a ambrosia, ela vai permitir que você viva.” As mãos calejadas voltaram a se aproximar da boca do menino, tomando todo o cuidado para não amassar o pequeno cubo dourado.

“E se eu não for digno, pai?” Ícaro encarava os dedos finos de seu pai com medo e angústia, se afastando delicadamente a cada momento que passava.

“Podemos resolver o que quer que aconteça. Criarei algo para a dor. Pedirei ajuda a outro Deus. Isso nos dará tempo, filho.”

“Você ainda viverá!” Gritou o homem em plenos pulmões, encarando o filho com lágrimas nos olhos velhos. Dédalo sempre teve o olhar de um futurista. Era o que se dizia em toda Athenas quando ele era mais novo. Dédalo nunca olhava para o presente ou para passado, mas sim para o que ainda não havia acontecido. Entretanto, naquele momento, encarando o corpo sangrando de seu único filho, que teimava em negar o mais perfeito medicamento já criado por deuses ou homens, Dédalo estava preso ao presente, vivendo aquele único momento de maneira torturante e intensa. “Podemos resolver o que quer que aconteça. Criarei algo para a dor. Pedirei ajuda a outro Deus. Isso nos dará tempo, filho.” Ele voltou a erguer a mão com o único pedaço de ambrosia, tremendo levemente com os sentimentos que estava sentindo.

“Pai…” Ícaro levantou o braço que não estava imobilizado e segurou a mão de seu pai, fechando os dedos dele ao redor do pequeno cubo de magia. “Está tudo bem…”

“Não, Ícaro, não está tudo bem!” Dédalo já chorava abertamente naquele momento. Grossas lágrimas manchavam seu rosto queimado pelo sol enquanto ele tentava manter qualquer tipo de compostura em frente a seu filho.

“Pai, mesmo que eu me cure, não saberia lidar com a dor, ou mesmo com todas as limitações que teria para o resto de minha vida. Já não sinto minhas pernas há dias, e respirar parece cada vez mais difícil. Digamos ainda que eu seja um dos sortudos que os deuses abençoaram. Que nossa rebeldia em povoar o reino de Zeus não seja suficiente para que eles me punam. O que faríamos, pai? Tentaríamos voar novamente? Eu ouvi as propostas que o senhor recebeu. Se não fosse por mim, poderia ter saído dessa prisão há meses com a ajuda das dríades ou mesmo Circe. Eu prendo você a esta ilha.” O jovem falava com uma lucidez que assustava o mais velho. Os olhos castanhos pareciam escuros com aceitação e seu tom de voz era digno de um sofista ateniense, em toda pompa de um mestre da dialética.

“Filho…” Dédalo guardou o cubo de volta em suas roupas, limpando suas lágrimas antes de voltar a encarar sua única prole. Ícaro sorriu para ele, tentando acalmar o homem que possuía o triplo de sua idade.

Não havia mais asas e nenhum reino aceitaria Dédalo sem que ele fosse desacompanhado.

“Sejamos ambos livres a nossa maneira, pai. Não é uma vergonha. O senhor sabe que não há melhor maneira.” Dédalo assentiu uma única, respirando fundo na tentativa de conter suas lágrimas. A ambrosia pesava em seu bolso, lembrando da única maneira de abordar toda aquela situação, mas ele reconhecia que seu filho tinha um ponto importante. Se amaldiçoado, Ícaro apenas seria condenado a mais tempo de dor e a uma cama por mais alguns anos. Se realmente curado por alguma ajuda divina, eles estariam presos à ilha até que morressem. Não havia mais asas e nenhum reino aceitaria Dédalo sem que ele fosse desacompanhado. Mesmo Circe apenas o aceitaria como única figura masculina de sua ilha.

“Vire minha cama para Oeste, pai. Quero ver o sol se pôr pela janela uma última vez e lembrar de tudo que quase tivemos. Quero lembrar dos ótimos tempos que vivemos juntos povoando os céus pois, mesmo que tenham sido escassos e efêmeros, eu nunca me senti mais feliz em toda minha vida.” O inventor fez o desejo do filho com cuidado, checando sempre que possível se ele estava sentindo alguma dor enquanto a cama era movida pelo cômodo. Ícaro encarou a janela em paz. Um pequeno grupo de pássaros voava ao longe, provavelmente em busca de seu bando. Ícaro sorriu largo ao assistir os pequenos pontos negros batendo asas ao longe. Dédalo suspirou de maneira embargada, ainda lutando contra o choro que teimava em querer cair.

“Não chore, pai. Se não mais poderei voar entre os pássaros, meus irmãos, deixe que a lira de Orfeu descanse minha alma pelo resto dos tempos. Serei lenda entre os lábios dos que nos aprisionaram e viverei na infinitude do sonho de liberdade.” O garoto sorria como sempre fizera, fechando um pouco os olhos e contorcendo o nariz. Lágrimas já voltavam a sujar a vista do mais velho, enquanto ele acariciava os cabelos castanhos de seu único filho em movimentos compassados.

“Perdoe-me, Ícaro. Eu errei com você…” disse Dédalo em um sussurro.

“Perdoar? Você nunca errou comigo, pai. Prometa-me que não vai deixar que isso defina você. O Elísio nos aguarda, pai. Eu só estarei indo para lá primeiro. Você sabe como sempre tenho de ser apressado em tudo, não é?” O jovem riu, também com lágrimas escorrendo por seus olhos enquanto encarava o horizonte entardecendo.

“Eu prometo, filho.” Dédalo sabia que estava longe de encontrar seu filho novamente. O acordo que fez o deixaria vivo por muito mais tempo do que ele merecia. Aquele não era um momento sobre ele ou sobre qualquer pecado que ele viria a pagar. “Eu te amo, Ícaro.”

A paz do silêncio o respondeu entre os barulhos do mar e a cantiga dos pássaros. Seu filho o encarava com olhos repletos de paz e carinho. O sorriso astuto ainda cortava seu rosto, como se estivesse se preparando para um último espetáculo de comédia. Um último ato antes do fechar das cortinas.

Os olhos castanhos se fecharam enquanto o sol se punha no horizonte, pintando as águas em tons de outono. Entre as constelações do céu noturno em ascensão, uma figura magra abriu os braços como se fossem asas e alçou voo por entre as nuvens, sem sol ou cera para derrubá-lo dessa vez. E, naquele momento, Ícaro foi finalmente livre.

*Matheus Henrique Soares N. da Silva tem 20 anos e é estudante do sexto período do curso de Medicina da Universidade de Pernambuco – UPE.

Foto destaque: Tela the lament of Icarus, do inglês Herbert James Draper.

NOTA DO EDITOR

Com esta crônica assinada por Matheus Henrique Soares N. da Silva, de apenas 20 anos de idade, o blog Falou e Disse dá sequência à coluna JOVENS AUTORES. O espaço é destinado a estimular e encorajar adolescentes e jovens a compartilharem as suas ideias e os seus pontos de vista de maneira mais ampla, buscando publicar crônicas e artigos sobre os mais variados temas.

A crônica O epitáfio de Ícaro foi editada respeitando-se a íntegra do texto recebido.

Textos para publicação no espaço JOVENS AUTORES devem ser encaminhados para o email ambrosiosantos@gmail.com