Jovens reconstroem a memória de mulheres negras apagadas da história
Mariana Lima/Observatório do 3º Setor
Em 26.11.2020
Livro “Narrativas negras” foi escrito e ilustrado por mulheres e reúne 41 nomes femininos da história brasileira a partir da escravidão, mas que são pouco lembrados
A primeira mulher a escrever um romance no Brasil e ser pioneira na literatura abolicionista foi Maria Firmina dos Reis (1822-1917), mas não há registros de seu rosto.
Já Tereza de Benguela, mulher que chefiou um quilombo que reuniu centenas de negros e índios no século XVIII, tem alguns de seus feitos registrados, mas pouco se sabe sobre onde ela nasceu ou como morreu.
Dandara surge para muitos como uma lenda. Mulher de Zumbi dos Palmares, a escassez de registros divide os historiadores, mas seu nome carrega uma potência que a população negra não abre mão.
Esperança Garcia (1770) fez jus ao nome. Ela foi a primeira advogada do Piauí, uma mulher negra e escravizada. O reconhecimento veio apenas 247 anos depois de escrever uma carta ao governador da então província denunciando os maus-tratos que sofria nas mãos de um novo senhor.
Todas essas mulheres têm algo em comum: foram apagadas da história brasileira e ignoradas dos livros didáticos que custam a retratar a atuação feminina em diversos momentos históricos.
Muitas acabaram relegadas a capítulos menores de obras que resgatam personalidade femininas, em sua maioria brancas, de relevância no país.
A busca por referências de mulheres negras, duplamente ocultadas pelo machismo e pelo racismo, mobilizou cerca de 60 escritoras e ilustradoras a colocar algumas dessas vidas no papel.
Desta forma, surgiu o livro “Narrativas negras – Biografias ilustradas de mulheres pretas brasileiras”, uma publicação feita por meio de financiamento coletivo e lançada em outubro pela editora mineira Voo.
A proposta do livro, que reúne histórias de 41 mulheres desde a luta pela abolição da escravatura até os dias atuais, é da estudante de design gráfico Isadora Ribeiro, de 21 anos, que reside em Belo Horizonte (MG).
Em abril do ano passado, ela precisou elaborar um projeto de livro para a faculdade. Assim, escolheu aliar a atividade com o incômodo que carregava há anos.
Como não era escritora, Isadora fez um chamado nas redes sociais para encontrar mulheres que pudessem escrever sobre as figuras históricas.
Diversas interessadas surgiram, e logo o projeto foi crescendo e outras ilustradoras se somaram ao trabalho, formando um coletivo de mulheres de diferentes idades e regiões do país.
Nem todas as participantes são negras, mas Isadora buscou escolher aquelas comprometidas com a causa antirracista e com consciência de seu lugar de fala.
A escolha das personagens a serem retratadas foi difícil. A própria Isadora não conseguia lembrar mais de dois nomes de figuras históricas ou com trajetórias de vida inspiradoras para compor o livro, devido à falta de referências não brancas.
Para fazer a seleção, Isadora teve que comprar vários livros com listas de mulheres importantes, pois muitos apresentavam uma amostragem limitada de pessoas negras.
Além de personagens históricas, uma pesquisa de opinião ajudou na seleção de nomes contemporâneos que inspiram outras mulheres negras, como a cantora Elza Soares, as filósofas Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro e a vereadora Marielle Franco (1979 – 2018), assassinada no Rio.
Durante a produção da obra, as escritoras e ilustradoras encontraram em livros de História e na internet informações escassas, contraditórias e erradas.
Em uma feira de apresentação do livro, ainda antes da publicação, foram alertadas de que a imagem usada como base para a ilustração da escritora Maria Firmina e comumente associada a ela era, na verdade, um retrato de uma mulher branca que foi enegrecido.
Como a real aparência da escritora é desconhecida, as ilustradoras se inspiraram em reconstruções mais aceitas por pesquisadores.
Toda a produção do livro foi discutida em encontros virtuais. Cerca de 20 das participantes integram o coletivo, voltado para a difusão dessas histórias nas redes sociais e oficinas de escrita e produção gráfica.
Com o dinheiro arrecadado no financiamento virtual, as integrantes do coletivo também planejam distribuir cerca de 963 exemplares do livro para escolas públicas, bibliotecas comunitárias e espaços educativos, pedindo como contrapartida que as instituições beneficiadas participem de oficinas de capacitação oferecidas pelo projeto com o objetivo de estimular a abordagem mais consciente da obra.
Fonte: El País Brasil
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