A arte de ter razão

Por

Vera Lúcia Braga de Moura*

Em 26.11.2020

A dialética erística é um conceito desenvolvido pelo filósofo alemão Arthur Schopenhauer na obra a “Arte de Ter Razão, 38 estratagemas”, para designar a arte de disputar de modo a ter razão por meios lícitos ou ilícitos. O filósofo afirma que podemos ter “razão objetiva” na coisa em questão, mas estar errados aos olhos das outras pessoas ou para a gente mesmo. O adversário pode refutar nossa prova, pode trazer outras provas e deter a razão, mas ele pode estar objetivamente errado. Assim, o filósofo quer dizer que a verdade objetiva de uma proposição e sua validade na aprovação dos debatedores são coisas diferentes.

E a que se deve isso? Bem, no decorrer dessa análise, o filósofo afirma que devido à vaidade inata do ser humano não se aceita que a nossa primeira afirmação se revele falsa e a do adversário tenha razão. Na Arte de Ter Razão, algo lógico que a obra aborda é que bastaria que os envolvidos na disputa emitissem juízos corretos. Para isso, faz-se necessário pensar, antes de falar. Mas, na grande maioria das pessoas, a vaidade inata é acompanhada de loquacidade e inata desonestidade. Isso implica dizer que a pessoa, em grande parte, fala antes de pensar e, mesmo quando percebem que sua afirmação é falsa e que estão errados, é preciso parecer que estejam certos. Essa é a arte da dialética. O interesse que deveria centrar na verdade e a tese supostamente verdadeira dão lugar a vaidade: assim, o verdadeiro deve parecer falso e o falso, verdadeiro. Não tem como não olhar para essa obra do alemão Arthur Schopenhauer e não nos remetermos aos jogos, meandros e emaranhados do poder e das disputas políticas da sociedade.

É interessante observar que na disputa as ferramentas mais utilizadas são a própria astúcia e a malícia: essas são habilidades aprendidas na arte da disputa.

Em regra geral, segundo o pensamento do filosofo alemão, “quem disputa não luta pela verdade, mas por sua tese[…] em geral, portanto cada um desejará impor a sua afirmação, mesmo quando essa lhe pareça momentaneamente falsa ou duvidosa” (2017, p.8-9). É interessante observar que na disputa as ferramentas mais utilizadas são a própria astúcia e a malícia: essas são habilidades aprendidas na arte da disputa. Dessa forma, cada um na disputa tem sua lógica natural e sua dialética. É comum na disputa ocorrer que, mesmo tendo razão, deixemo-nos confundir ou refutar por uma argumentação superficial, ou inversamente, e em grande parte, quem sai vencedor de uma disputa deve sua vitória não a coerência de seus argumentos na exposição de sua tese, mas antes à sua astúcia e habilidade com que a defendeu.

A maestria na arte de ter razão encontra espaço nas questões inatas, como a vaidade, embora essa lógica, também, vislumbre terreno fértil no exercício e reflexão sobre frases com as quais se refutam o adversário. Nesse caso, a lógica pode não ter benefícios práticos, mas a dialética sim, pois a lógica se interessa apenas pelas meras formulações das proposições, elaboração das questões e a dialética pelo conteúdo, como ensina Aristóteles. Contudo, esse filósofo, no propósito de definir a dialética, afirma que a disputa deve ser o objetivo principal, mas, ao mesmo tempo, a busca pela verdade, dependendo da dialética, da aprovação, da opinião dos outros ou da aparência. Já para Schopenhauer, para uma formulação explicita da dialética, é necessário não ter preocupação com a verdade objetiva, pois esta é objeto da lógica, importa considerá-la unicamente como a arte de ter razão.

O filósofo alemão ressalta, também, que a dialética ensina como se defender dos ataques variados, sobretudo, contra os desonestos, e, da mesma forma, como nós mesmos podemos rechaçar o que o outro afirma, sem nos contradizermos e, principalmente, sem sermos refutados. Diz, ainda Schopenhauer que a dialética comumente deixa a verdade de lado e se preocupa em defender as afirmações propostas e derrubar as do outro. Mesmo quando temos razão, precisamos da dialética para defendê-la e necessita-se conhecer os artifícios desonestos para se contrapor a eles. Mais precisamente, precisa-se deles para vencer o adversário com as mesmas armas. Nas regras da disputa, na arte da dialética muitas vezes não sabemos se temos ou não razão e outras vezes, acreditamos ter razão, mas nos enganamos; em outros momentos ambas as partes acreditam ter razão. E quando surge a disputa, geralmente, todos acham que a verdade está do seu lado e, em seguida, todos passam a duvidar e só no final que ela poderá ser revelada.

A dialética deve, portanto, ter como tarefa principal expor e analisar os estratagemas da desonestidade na disputa, para que em debates possa reconhecê-los de pronto e destruí-los.

Quanto à verdade, muitas vezes esta passa a passos largos da compreensão humana, na sua definição do que venha a ser verdadeiro ou falso e, talvez, a verdade permaneça no véu do esquecimento ou nos enigmas da vida. A dialética é uma espécie de esgrima intelectual, nas palavras de Schopenhauer. Um mestre de esgrima não está preocupado com quem tem razão na disputa que provocou o duelo, mas golpear e aparar, isso é o que importa. A dialética deve, portanto, ter como tarefa principal expor e analisar os estratagemas da desonestidade na disputa, para que em debates possa reconhecê-los de pronto e destruí-los. Por isso, a dialética na sua exposição, conforme considerações do filósofo, deve primar por ter razão e não a verdade.

Assim, na base de toda a dialética, é necessário considerar o principal de qualquer disputa de acordo com as proposições do filósofo: o adversário, ou nós mesmos, apresentamos uma tese e, para refutá-la, existem duas formas e dois caminhos. As formas: mostra que a tese não está de acordo com a natureza das coisas, com a verdade objetiva absoluta que é a lógica, ou com outras afirmações ou concessões do oponente, ou seja, com a verdade relativa. É interessante analisarmos que não existe verdade total, pois ela é relativa e relacional. Caminhos: a refutação direta ou indireta. A refutação direta ataca a tese em seus fundamentos; a refutação indireta, em suas consequências. A refutação direta argumenta mostrando que a tese não é verdadeira, a indireta diz que a tese pode não ser verdadeira.

Em toda a argumentação, contudo, deve-se estar de acordo sobre algum ponto como princípio para julgar/analisar a questão debatida. Não se deve, portanto, discutir com quem nega os seus princípios, conforme o pensador alemão. Na obra ” A Arte de Ter Razão” são descritos 38 estratagemas por Arthur Schopenhauer, na disputa que caracteriza a arte de ter razão. O estratagema 1 diz que se deve ampliar o máximo a afirmação do adversário, interpretá-la do modo mais geral possível e exagerá-la, pois, quanto mais geral se torna uma afirmação, mais exposta ela fica e a nossa própria afirmação colocá-la no sentido mais limitado possível, na formulação exata, circunscrevendo-a aos limites mais estreitos possível, para se proteger dos ataques. O estratagema 5 diz que para provar nossa tese também podemos utilizar premissas falsas, caso o adversário não admita as verdadeiras. O estratagema 8 aborda sobre suscitar a cólera do adversário pois, encolerizado, ele não estará em condições de julgar corretamente e perceber a sua vantagem.

Schopenhauer afirma, no verso da capa final da obra, que “nada supera para o homem a satisfação de sua vaidade e nenhuma ferida dói mais do que aquela que golpeia esta vaidade [..]”.

Para provocar a cólera, faz-se injustiça abertamente, assedia-se e atua-se de modo geral e insolente. O estratagema 10 ensina que se o adversário deliberadamente dá respostas negativas para perguntas cujas afirmativas serão necessárias para a tese proposta. Deve-se perguntar o oposto da tese que se quer validar. No estratagema 14, um truque insolente é quando o adversário responde a várias perguntas sem que suas respostas atendam a conclusão esperada. Nesse caso, apresenta-se e celebra-se triunfalmente como se chegou à conclusão pretendida. O estratagema 27 ensina que se o adversário se irrita inesperadamente, é preciso insistir nesse argumento com mais fervor ainda, não só porque é bom enfurecer o oponente, mas porque é de se imaginar que se tocou no seu ponto fraco. O estratagema 29 lembra que ao perceber que irá ser derrotado, faz-se uma diversão, ou seja, de repente começa-se a falar algo totalmente diferente, como se fosse pertinente ao tema, contribuindo para se opor ao adversário. Isso se faz com alguma discrição. O estratagema 32 traz uma maneira rápida de eliminar ou ao menos tornar suspeita uma afirmação do adversário. Consiste em colocá-la numa categoria odiada, como, por exemplo, isso é maniqueísmo, ou mesmo para os tempos atuais, isso é Fake News. O estratagema 36 fala de aturdir, desconcertar o adversário com termos sem sentido. O último estratagema ressalta que quando se percebe que o adversário é superior e não se consegue ter razão, a pessoa em questão se torna ofensiva e grosseira. Tornar-se pessoal consiste em abandonar o objeto da disputa, porque se trata de um jogo perdido, e atacar de alguma forma o adversário, a sua pessoa. Na personalização, abandona-se por completo o objeto da disputa e dirige-se o ataque contra o adversário, tornando-se ofensivo, maldoso, abusivo, grosseiro. Diz-se que essa regra é muito apreciada, porque todo mundo pode ser capaz de aplicá-la, sendo utilizada com muita frequência nas disputas, nos convencimentos, nos embates que envolvem adversários na arte de vencer um debate sem precisar ter razão.

Schopenhauer afirma, no verso da capa final da obra, que “nada supera para o homem a satisfação de sua vaidade e nenhuma ferida dói mais do que aquela que golpeia esta vaidade [..]”. Essa satisfação da vaidade surge da comparação de si mesmo com os outros, em todos os aspectos, principalmente em relação às competências intelectuais. Isso ocorre de modo eficaz e bastante intenso justamente na disputa. Daí a amargura do vencido, sem que nenhuma injustiça tenha sido cometida contra ele, e eis seu recurso ao último estratagema do qual não podemos nos esquivar com mera polidez.

Esse texto teve como base a obra póstuma de Schopenhauer. Foi escrita em 1864 por Julius Frauenstadt, a partir dos manuscritos encontrados na casa do filósofo. Mas, considero uma obra atual, como, em geral, são os clássicos. Sua concepção da dialética é a de uma “lógica das aparências”, que se resume numa arte de disputar. Antes de tudo, esta obra é um acervo importante para que nós nos debrucemos e percebamos os esquemas de argumentação para que, por meio de seus estratagemas, possamos nos advertir para as nebulosidades e artimanhas dos discursos políticos, da imprensa, dos debates veiculados nas mídias impressas, digitais e televisivas, opiniões de forma geral, a fim de que possamos nos subsidiar para vivenciarmos melhores experiências da vida em sociedade,

Trago, também, um fragmento da obra do autor quando ele cita Temístocles (político e general ateniense que viveu antes de Cristo) e diz ao também espartano Euribíades: ”Golpeia-me, mas me escuta”. Ressalta Schopenhauer: “Mas isso não está ao alcance de todos” (2017, p.48). Verdade, a escuta deveria ser basilar para a arte do bem viver e do conviver bem. Pôncio Pilatos é citado também na referida obra, quando questiona: “ O que é a verdade?”. O filósofo responde com a máxima de Demócrito, da Grécia Antiga: ”A verdade está nas profundezas.”

Encerro sem finalizar essa reflexão, pois penso ser interessante nós perscrutarmos os discursos e pensarmos sistematicamente sobre eles. Finalmente, com as assertivas de Schopenhauer, ( 2017, p.57),  despeço-me: “É fácil dizer que, numa discussão, não devemos buscar senão a promoção da verdade, só que ainda não sabemos onde ela se encontra: somos extraviados pelos argumentos do adversário e pelos nossos próprios”.

*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. SEDE/Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco. Escreve às quintas-feiras.

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