O gato preto e o homem primitivo

Por

Arnaud Mattoso*

Em 02.12.2020

O gato preto filhote estava na calçada espremido entre a calha e a parede. Escondia-se dos passantes, enquanto miava alucinado, chamando a mãe que ele nunca mais veria. Olhei-o com dó. A mesma que teria qualquer um com o sentimento de amor pelos animais. A patinha direita estava quebrada e ele mal se mantinha em pé. Talvez usasse o cano e a parede como auxílio para se manter de pé. Pensei em lhe dar miolos de pão na volta da padaria, mas ele já não estava mais lá. Não poderia levá-lo para casa. Tenho uma gata domesticada e uma esposa selvagem. Gatos de rua não são bem-vindos. Ambas não os querem por lá.

No outro dia, pela manhã bem cedo, ouvi o miado do lado de fora. Parecia vir do jardim do vizinho. Era o mesmo miado da tarde anterior. Passeei no jardim com a cachorra e a gata que ouviam o chamado triste. Procuravam o autor da angústia. Imaginei a noite que passou sozinho e como estaria com fome e sede. Imaginei a sua pata quebrada e a dor que talvez sentisse.

No dia seguinte, caminhando e olhando os prédios abandonados ao longo da avenida larga de Casa Caiada, em Olinda, pensei o quanto a Pandemia empobreceu a população brasileira, afetou vida das pessoas comuns, dos trabalhadores, aumentou o desemprego e destruiu os sonhos de empreendedores. Como a vida econômica da sociedade se deteriorou e como a miséria está mais visível e presente no cotidiano. Não há um lugar sequer na cidade, onde não haja alguém pedindo, com roupas estropiadas e sem o mínimo para viver.

Na calçada da avenida Carlos de Lima Cavalcanti passei diante de um galpão gigante, onde um dia funcionou uma movimentada academia, envidraçada para exibir os corpos suados se exercitando. Agora, exibe a placa de “aluga-se”. Logo à frente, está o prédio fechado do curso de inglês. Houve época de alunos entrando e saindo, desde o horário da manhã ao noturno.

Agora, em frente ao prédio de línguas estrangeiras abandonado há um homem primitivo sentado na calçada, sem camisa e com uma bermuda velha. Descalço, com as mãos sobre a cabeça, balbuciando o inaudível. Os meus olhos não se fixaram nele. Foi um olhar rápido. Era deprimente demais fixar os olhos.

Aquele homem não era um ser humano. Toda a dignidade humana se perdera. Era um bicho assustado com frio e fome, sem roupa e sem teto. Imaginei-o no relento da noite, dormindo no chão sem camisa, sem banho e sem ter a quem pedir ajuda. Imaginei a rejeição dos olhares alheios, tal qual o meu olhar de espanto. Imaginei o cheiro acre de sua presença.

Ambos não têm quem os ajude, porque a humanidade se acostumou ao cotidiano das cenas de horror urbano.

Fiquei triste em vê-lo e constatar o quanto a cena se tornou comum. Essa é a realidade de nossos dias. Não é possível não haver assistência social pública municipal e estadual para auxiliar as pessoas em estado de abandono e oferecer o mínimo da dignidade de banho, alimentação e colchão. O ato social e solidário das prefeituras em usar o imposto do contribuinte para ajudar o próximo está além da política partidária. É obrigação constitucional do gestor público.

Aquele homem primitivo é o gato abandonado de pata quebrada, escondido sem ter a quem pedir ajuda. O gato vulnerável à maldade humana é o mesmo homem primitivo que assusta o próximo de sua espécie. Ambos se igualam no abandono de suas carências básicas. Ambos não têm quem os ajude, porque a humanidade se acostumou ao cotidiano das cenas de horror urbano.

 *Arnaud Mattoso é jornalista e escritor.

Foto destaque: Internet