Exclusão digital e violência doméstica impedem acesso das mulheres à Justiça

Por

Adriana Mello *

Em 05.12.2020

De acordo com o levantamento “TIC Domicílios 2019”, formulado pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), aproximadamente 30% dos lares no Brasil não têm acesso à internet. Em matéria recente, o portal G1 nos revela uma triste realidade no Brasil, a exclusão digital. Grande parte da população brasileira não tem acesso à internet, fato que restou mais evidente durante a pandemia da Covid-19.

O estudo demonstra que há uma diferença significativa entre as classes sociais no Brasil: em famílias cuja renda é de até um salário mínimo, metade não consegue navegar na rede em casa, enquanto que na classe A apenas 1% não tem conexão.

O impacto da desigualdade social e econômica vem atingindo mais as mulheres durante a pandemia. A redução dos registros de lesões corporais e estupros no início da pandemia, longe de ser comemorada, nos manifesta a subnotificação desses crimes e a consequente dificuldade de acesso à Justiça por parte das mulheres, principalmente negras e indígenas. De acordo com os dados do FBSP, as mulheres não tiveram como denunciar a violência porque grande parte dos serviços estava funcionando parcialmente e, em alguns casos, apenas de forma digital, gerando obstáculo quase instransponível para as mulheres, sobretudo as que residem nas regiões mais afastadas dos centros urbanos, no campo e nas florestas.

Os dados do FBSP apontam que houve aumento dos crimes de feminicídio durante a pandemia em cerca 22%, mas a violência letal não atinge as mulheres da mesma forma, porque a taxa de homicídios de mulheres negras foi de 5,2 por cem mil habitantes, enquanto a taxa de mulheres não negras foi de 2,8 %. Nesse sentido, o recorte de raça é fundamental para refletir sobre as desigualdades raciais e a ausência de políticas públicas para enfrentar o racismo estrutural e a violência contra as mulheres negras.

Num país com a crescente feminização da pobreza, as mulheres enfrentaram mais um desafio: os obstáculos para realizar uma denúncia de violência doméstica e familiar. O inimigo mora dentro de casa, a falta de acesso à internet, o medo do contágio pelo vírus e o de morrer por denunciar são as maiores causas da subnotificação.

A falta de acesso à educação durante a pandemia atingiu mais fortemente as crianças e os adolescentes das escolas públicas, que não têm como acompanhar as aulas remotas (quando há), seja por falta de acesso digital ou falta de acesso à internet, o que também tem impactado a vida das mulheres. Existe um verdadeiro abismo social entre alunos da rede privada e da rede pública de ensino. Os alunos da rede privada continuam com as aulas online nos seus computadores, no conforto das suas casas, e os alunos das comunidades, favelas e periferias estão sem aulas, e o pior, sem previsão.

Isso também vem causando mais dificuldades para as mulheres, especialmente as que estão vivendo uma situação de violência doméstica, que não têm com quem, nem onde deixar os filhos para trabalhar e estudar. A falta de creches públicas e as escolas fechadas terão um impacto social e econômico enorme para o futuro do Brasil. Pobreza e desigualdade de gênero trarão serias consequências para o desenvolvimento humano do Brasil. A perda será irreparável e atitudes precisam ser tomadas pelos atuais governantes.

O estudo ainda aponta que existem desigualdades entre as várias regiões do Brasil. Dados do IBGE mostram que o menor índice de lares conectados à internet está no Nordeste, com 69,1%. Ou seja: mais de 30% das residências da região estão offline. Em relação à zona rural no país, o quadro é muito pior: menos de 50% das casas têm acesso à rede. No Norte, 77% das famílias fora da zona urbana estão desconectadas.

O acesso à internet foi incluído pelo Conselho dos Direitos Humanos da ONU como um direito humano, derivado da liberdade de expressão, comunicação e opinião. Isso porque se entende que a internet é uma ferramenta indispensável para a realização da multiplicidade de direitos humanos, combate à desigualdade e aceleração do desenvolvimento.

Em relação à Justiça, temos de pensar na criação de políticas públicas judiciárias que sejam mais inclusivas e democráticas, que permitam às mulheres realizar as denúncias e acompanhar os seus processos judiciais sem burocracia, com acolhimento e respeitando os direitos humanos.

Exemplo de boa prática de acesso à Justiça recentemente lançada no Rio de Janeiro refere-se à criação do projeto Maria da Penha Virtual, um app em parceria entre o Tribunal de Justiça, a Emerj e a UFRJ para que as mulheres vítimas de violência possam requerer diretamente a medida protetiva de urgência à Justiça, por qualquer meio eletrônico disponível, garantindo que a decisão judicial seja concedida em poucos minutos.

Um dos grandes desafios agora é democratizar o acesso à Justiça, com a criação de ferramentas mais acessíveis, e disponibilizar talvez centros de cidadania e Justiça para as mulheres que facilitem a inclusão digital, garantindo sobretudo às mulheres o direito de acesso à Justiça de forma irrestrita e igualitária e a viver uma vida livre de violência.

*Adriana Mello é juíza titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Rio de Janeiro, professora, escritora, presidente do Fórum Permanente de Violência Doméstica, Familiar e de Gênero da EMERJ, presidente do Núcleo de Pesquisa em Gênero, Raça e Etnia (NUPEGRE), possui mestrado em Direito pela Universidade Cândido Mendes, mestrado em Criminologia pela Universidade de Barcelona e doutorado em Direito Público e Filosofia Juridicopolítica pela Universidade Autonoma de Barcelona.

Artigo publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico.

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