Afeganistão pune apenas metade de crimes contra mulheres e ONU pede ação

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ONU News

Em 08.12.2020

Especialistas em direitos humanos da Missão das Nações Unidas no país, Unama, dizem que poucos delitos resultaram em condenações; chefe de direitos humanos pede transformações jurídicas, administrativas e culturais e o fim de um sistema legal que considera “profundamente injusto.”

O sistema de justiça afegão “não funciona para as mulheres e meninas vítimas de violência, especialmente em casos de casamento infantil.”

A conclusão é de um relatório conjunto do Serviço de Direitos Humanos da Missão da ONU no país, Unama, e do Escritório de Direitos Humanos da ONU, que avaliou 303 crimes entre setembro de 2018 e fevereiro deste ano.

Pandemia pode ter aumentado ainda mais a vulnerabilidade das mulheres, ONU/ Eric Kanalstein

Aumento

Segundo a pesquisa, a pandemia de Covid-19 pode ter aumentado ainda mais a vulnerabilidade das mulheres e as barreiras de proteção e justiça.

Embora a resposta tenha melhorado nos últimos anos, continua a falhar em muitos aspectos. Apenas metade dos crimes de violência documentados contra mulheres e meninas chegou a um tribunal e a impunidade continua prevalecendo.

O julgamento depende da vítima ou de seu advogado apresentarem uma queixa e o caso será encerrado se a queixa for retirada. Segundo a pesquisa, “isso representa um enorme fardo para as mulheres, especialmente quando denunciar um crime pode colocar a vítima em conflito com sua família e comunidade e até mesmo colocá-la em perigo.”

Casamento infantil

A situação é particularmente problemática no caso de crianças casadas à força.

Dos 16 casos de casamento infantil documentados no relatório, apenas um resultou em condenação. A grande maioria dos matrimônios é arranjada ou tolerada pelas famílias.

O relatório detalha um caso em que dois homens teriam trocado as filhas de 13 e 14 anos por novas esposas. As meninas apresentaram queixa à polícia e os supostos perpetradores foram imediatamente presos. No entanto, algumas semanas depois, a promotoria encerrou o caso porque as meninas, junto com as mães, retiraram a denúncia e os homens foram libertados.

Sobreviventes

Em comunicado, a alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, disse que “em muitos casos, a lei vitimiza novamente mulheres e meninas que já sofreram enormemente.”

Segundo ela, “é inacreditável que sobreviventes que foram espancadas ou casadas ​​contra sua vontade sejam deixadas à própria sorte e que o Estado não as proteja.”

Ela pede às autoridades afegãs que alterem a lei para garantir que as autoridades têm o poder de investigar e processar todos os crimes, independentemente de a vítima apresentar ou retirar sua queixa.

Independência

Outra preocupação é o tratamento a mulheres e meninas que saem de casa sem a permissão de seu responsável ou sem informar o paradeiro à família.

Embora isso não seja um crime sob a lei afegã, por vezes elas são presas por “fugir” e acusadas ​​de tentativa de ter relações sexuais fora do casamento.

O relatório documenta ainda 22 casos de homicídio perpetrados como “crime de honra”. 

Embora a honra não seja mais aceita como um fator atenuante no Código Penal, esses assassinatos mostram que algumas comunidades continuam acreditando que as mulheres podem ser punidas para preservar ou restaurar a integridade moral da família.

Segundo a pesquisa, esses crimes tiveram uma taxa de condenação muito menor, 22,7%, do que assassinatos não relacionados com esse tema.

O relatório documenta 22 casos de homicídio como “crime de honra”, Foto: Unama/Fraidoon Poya

Estupro

A investigação e o julgamento de casos de estupro também levantam sérias preocupações.

Os exames médicos fornecidos às mulheres após relatar um estupro pareciam, em muitos casos, não seguir as melhores práticas. Segundo informações, algumas mulheres são submetidas ao chamado “teste de virgindade”, um exame sem base científica que constitui uma grave violação dos direitos humanos.

O relatório pede que esses exames sejam totalmente criminalizados, sem exceções, e que aqueles que os realizam sejam processados.

Alta comissária reconhece esforços, mas diz que não são suficientes, Foto: ONU News/Daniel Johnson

Reparação

Houve ainda casos de mulheres processadas por relações sexuais extraconjugais após denunciarem um estupro. Cerca de 40 recorreram à autoimolação ou suicídio após serem submetidas à violência.

Segundo a pesquisa, “esses atos desesperados sugerem que elas não acham que o sistema de justiça lhes oferece uma chance de segurança ou reparação.”

Para Michelle Bachelet, “é de partir o coração e ao mesmo tempo estarrecedor que meninas e mulheres não vejam outra opção para escapar da violência a não ser acabar com suas vidas.” 

A alta comissária reconhece os esforços feitos nos últimos anos, mas diz que não são suficientes. Ela pede mudanças jurídicas, administrativas e culturais “para abandonar um sistema de justiça profundamente injusto.”

Foto destaque: Unama/Eric Kanalstein – Sistema de justiça afegão continua falhando em relação às vítimas de violência de gênero