É preciso eliminar o racismo no Brasil urgentemente, para ontem
Luiz Evandro Vargas Duplat Filho*
Em 09.10.2020
“Tem de mudar a mentalidade de que preto parado é suspeito e correndo é culpado. Isso tem que mudar”.
A atitude inicial para combater o racismo no Brasil é admitir a sua existência. Se a população e as autoridades ignoram o racismo, não há como combatê-lo. É evidente o desconhecimento do cidadão brasileiro sobre direitos humanos, aspectos históricos e dados estatísticos que envolvem essa opressão social. A ausência de conhecimento contribui para o sufocamento do negro.
O professor e antropólogo Kabengele Munanga, homenageado por ocasião da comemoração dos 50 anos da assinatura pelo Brasil da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, em 2019, disse: “O silêncio e o não dito sobre o racismo brasileiro marca o preconceito da educação e da formação da cidadania em toda as direções” [1]. Acreditamos que o estudo, a investigação e a elaboração de políticas públicas com objetivo de combater a desigualdade social são medidas urgentes. Mais do que isso, refletir sobre o racismo e ser antirracista são atos de cidadania.
A Agenda da ONU 2030 traça como objetivos a erradicação da pobreza em todas as suas dimensões, a redução das desigualdades socioeconômicas e o combate às discriminações de todos os tipos [2].
A discriminação por cor se confunde ao próprio desenvolvimento da sociedade brasileira. Na época do descobrimento, o preto foi sequestrado da sua terra natal, tratado como “coisa” e utilizado como a principal força de trabalho do colonizador em terras brasileiras. No ensino básico, transmite-se a fábula de que a autonomia do Brasil foi concretizada pela vontade do povo miscigenado, sendo essa conquista fruto da convivência harmônica entre os europeus, indígenas e negros que desenhavam o quadro social e que conduziram à proclamação da independência pacífica. O clássico da literatura “Casa-Grande e Senzala” ajuda a difundir essa ideia de que a mestiçagem, o hibridismo, a plasticidade cultural da convivência entre os diferentes povos é, além de uma característica, uma vantagem do Brasil [3].
É certo também que os livros de História atribuem relativa importância aos movimentos autônomos pró-independência (Revolução do Portos, Independência Baiana e Inconfidência Mineira, por exemplo), contudo, a maioria dos escritos traz a lição principal de que o grande herói da independência do Brasil é o imperador Dom Pedro I, que, no dia 7 de setembro de 1822, proferiu às margens do Rio Ipiranga o famoso grito.
Apesar da importância social e jurídica do ato praticado pelo monarca português, pensamos que os verdadeiros heróis da independência do Brasil são outros. A elite dominante, a cultura branca e os costumes fizeram com que as lutas e conquistas de diversos líderes populares fossem colocadas em segundo plano e, especialmente, contribuíram para o esquecimento das batalhas travadas por brasileiros natos, conduzidas em sua grande maioria por pessoas pretas.
Com escopo de esclarecimento, destacamos que são pessoas de feitos notáveis, legítimos heróis e heroínas, da independência do Brasil, as seguintes figuras: Maria Felipa [4] — mulher negra, que nasceu escrava e liderou um grupo de 40 mulheres e homens no recôncavo baiano na luta contra a dominação portuguesa que culminou na proclamação de independência da Bahia no dia 2 de julho de 1823; e Zumbi dos Palmares [5] — homem negro que em 1680 já comandava no nordeste brasileiro movimentos autônomos de resistência às tropas portuguesas (quilombos), é considerado um dos grandes líderes da história pátria, um símbolo da resistência e luta contra a escravidão, lutou pela liberdade de culto, religião e prática da cultura africana no Brasil Colonial.
A nosso sentir, há muitos personagens de maior relevância que o imperador para a conquista da independência do Brasil, a exemplo de Maria Quitéria, Joana Angélica, Ana Nery, Tiradentes, Esperança Garcia, Luiz Gama, entre outros. Todavia, a verdadeira história permanece escondida, em virtude do apagamento sistemático de produções e saberes produzidos pelo grupo étnico oprimido (epistemicídio).
Todos concordam que o racismo brasileiro teve origem no período colonial e que a escravidão foi legalmente extinta no Brasil no dia 13 de maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea. Alguns especialistas afirmam que esses atos coloniais de opressão tomaram outra roupagem e continuam sendo praticados [6].
Sem dúvida, a herança da escravidão deixou consequências nefastas para a população preta, inclusive, demonstradas em pesquisas recentes do IBGE, mercado de trabalho, distribuição de renda, condições de moradia, educação (taxa de analfabetismo), violência (taxa de homicídios) e representação política são os principais dos fatores pesquisados [7]. A pesquisa revela que as pessoas de cor, raça preta ou parda estão em posição de desvantagem em todos os prognósticos das condições sociais no Brasil.
A morte de jovens negros na periferia não pode ser naturalizada. É um sintoma do racismo estrutural não se espantar com essa realidade. Estudiosos defendem que esse cenário brasileiro representa um genocídio da raça negra.
A taxa de homicídio é utilizada para aferição da forma mais extrema de violência no mundo. O estudo demonstra que a taxa de homicídio de pessoas brancas permaneceu estável nos anos de 2012 até 2017, enquanto que o percentual de negros vítimas de homicídio aumentou significativamente. Em todos os grupos etários, o índice de homicídios contra os negros é superior, constatamos que para os jovens entre 15 e 29 anos de idade o percentual é de 98,5 de jovens negros ou pardos, por cem mil habitantes, enquanto a taxa para brancos é de 34,0. A morte de jovens negros na periferia não pode ser naturalizada. É um sintoma do racismo estrutural não se espantar com essa realidade. Estudiosos defendem que esse cenário brasileiro representa um genocídio da raça negra [8]. E, felizmente, há vozes defendendo a mudança: “Tem de mudar a mentalidade de que preto parado é suspeito e correndo é culpado. Isso tem que mudar” [9].
*Luiz Evandro Vargas Duplat Filho é juiz do Trabalho do TRT da 2ª Região (SP) e especialista em Direito Constitucional.
Artigo publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico.
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