A multiculturalidade de Paulo Freire não tem adjetivos, por isso é mais humana

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 09.12.2020

A discussão sobre a multiculturalidade só aparece, efetivamente, nos escritos de Paulo Freire a partir da década de 90, mais precisamente nos livros Pedagogia da Esperança e Política e Educação, sendo que neste ele utiliza o termo “unidade na diversidade”. No entanto, não se deve concluir que essa temática, enquanto concepção político-filosófica, não estava presente em seus escritos anteriores. A dimensão humanista de seu pensamento incorpora, desde suas primeiras obras, os princípios ético-culturais, centrados na ideia de radicalidade democrática, que fundamentam a sua concepção de multiculturalidade.

Em conversa com o professor João Francisco de Souza, lá pelos idos de 2006, João me falava que a multiculturalidade de Paulo Freire não tinha adjetivos, não era adjetivada, não expressa um recorte específico como outros pensadores defendiam – como multiculturalismo conservador, liberal, de esquerda, crítico, emancipador, revolucionário, por exemplo – e por isso trazia em si a dimensão mais profunda de valorização do ser humano. Passei a ver com mais clareza essa perspectiva freireana sobre multiculturalidade, a partir desse horizonte que João apontava.

O fato de essa questão ter surgido mais enfaticamente apenas em seus últimos escritos representa uma mudança (no sentido dialético de superação) significativa em seu pensamento. Essa discussão está relacionada ao seu entendimento de radicalidade democrática e a perspectiva de pós-modernidade progressista que ele assume diante do mundo, chegando a afirmar no livro Política e Educação, Editora Cortez, inclusive, que “O que a pós-modernidade progressista nos coloca é a compreensão realmente dialética da confrontação e dos conflitos e não sua inteligência mecanicista” (1997, p. 14). Esta atitude contribuiu, significativamente, para que ele incorporasse, ou retomasse de modo mais enfático, temas da intersubjetividade humana, dentro de um otimismo crítico e de uma postura crítico-denunciadora das estruturas desumanizantes.

Nessa direção, ele afirma a necessidade de se reexaminar o papel da educação que, apesar de seus limites, é um instrumento fundamental na reinvenção do mundo.  É nesse sentido que ele escreve que “Como processo de conhecimento, formação política, manifestação ética, procura da boniteza, capacitação científica e técnica, a educação é indispensável aos seres humanos e deles específica na História como movimento, como luta” (1997, p. 14). Assume com maior radicalidade, a partir da década de 80 e, principalmente, nos anos 90, uma postura crítica e contestadora contra o modelo neoliberal imposto às sociedades dependentes pelas elites dominantes, contra o discurso que afirmava o fim da história e das lutas de classes e à ideologia fatalista de recusa ao sonho e a utopia.

A multiculturalidade surge, então, como uma ação de resistência às ideologias reprodutoras de discriminação e de construção de atitudes democráticas possibilitadoras de convivências sociais humanizadas entre as diversas culturas, na intenção da concretização da unidade na diversidade. É uma construção histórica, fruto de um processo de luta e embate social, não sendo, portanto, um fenômeno natural, espontâneo. No dizer freireano, implica na convivência democrática de diversas culturas num mesmo espaço social.

A realização da unidade na diversidade, que Freire afirma ser a grande utopia, implica numa luta em defesa de questões de classe, de etnia, de gênero, de credo, de ideologias e de expressões e modos diferentes de ser de culturas diversas. A dimensão democrática é uma condição indispensável para a efetivação do processo de multiculturalidade, e isso significa dizer que é o diálogo a base de sua concretização. A luta mesma pela realização dessa unidade na diversidade já significa o início da construção da multiculturalidade (1992, p. 157), como afirma na Pedagogia da Esperança, Paz e Terra.

Freire situa a criação da multiculturalidade dentro de um horizonte utópico, por entender que a sua efetivação implica na ruptura de todas as formas de opressão e discriminação, inclusive das ideologias que reproduzem preconceitos e atitudes discriminatórias. Nesse sentido, destaca dois aspectos sem os quais afirma tornar-se impossível a superação das condições desumanizantes, que são, primeiro, a necessidade de uma compreensão crítica da história, que implica um processo de conscientização, e, em segundo lugar, projetos político-pedagógicos que atuem na perspectiva da transformação da própria realidade (1997, p. 34).

A influência do existencialismo contribuiu para a sua compreensão da história como algo em permanente movimento, ou seja, um processo de criação e recriação, que ele denomina de história como possibilidade. Na medida em que ele considera a história como tempo de possibilidade e, consequentemente, como processo de libertação de homens e mulheres, tendo em vista que essa perspectiva rejeita qualquer entendimento da história como um futuro determinado, inexorável, marcado pela fatalidade e imobilidade, reconhece a educação, também, como possibilidade. Dessa maneira, se a história, numa visão crítica, é possibilidade e processo que demanda libertação, a educação é, também, processo que conduz à libertação.

A perspectiva de uma sociedade fundada numa relação de Multiculturalidade, como foi mencionado anteriormente, já pode ser verificada nos primeiros escritos de Freire, mesmo que ainda não tivesse uma formulação mais própria – e, ainda, sem essa terminologia – e a sua concepção  se apoiasse em pressupostos outros. A multiculturalidade, afirmada por Freire, implica na concretização da unidade na diversidade que possibilita a convivência pautada na liberdade conquistada e no direito assegurado de diferentes culturas num mesmo espaço social.

Afirmar, no entanto, que a multiculturalidade localiza-se no horizonte da utopia, nada tem a ver com uma visão idealista e a-histórica, pois, sendo, para Freire, a utopia o realizável na perspectiva da ação histórica, porque ele a entende como práxis, esta afirmação implica no reconhecimento de que a luta pela permanente humanização exige a superação de estruturas sociais fundadas na divisão de classes, da imposição de culturas sobres outras e da evolução de uma convivência baseada na não aceitação dos diferentes para um modelo de sociedade em que prevaleça o diálogo crítico e solidário entre todas as culturas e povos. Dessa maneira, o reconhecimento da dimensão utópica do processo de multiculturalidade é, no entendimento defendido por Freire, uma criação histórica capaz de gerar uma sociedade democrática, e isso exige uma intervenção política e social através de práticas educativas libertadoras.

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.