Tempo de vivenciar os afetos

Por

Vera Lúcia Braga de Moura*

Em 10.12.2020

Quantos sonhos, quantas vidas são ceifadas pelo descaso, desamor, descuido, desrespeito, desumanidades?

O que fazemos com o nosso tempo? Desejamos a felicidade, bem-estar, harmonia, paz, equilíbrio, equidade social. Quanto tempo dedicamos da nossa vida para olhar as pessoas com generosidade, respeito, cuidado? Quanto tempo dispomos para acolher, cuidar, compreender, entender o universo do outro? Acolher para não adoecer, pensamos sobre isso?

Qual o tempo que dispomos para nossas vivências na conjuntura atual? Encontramos tempo para si e para o outro? O ser humano pós-moderno é aquele ser extremamente ocupado. Qual o tempo para vivenciarmos a afetividade nas relações interpessoais? Eis uma preocupação que trago para nossa reflexão, porque por mais que amemos e nos nutramos de amorosidade, precisamos das interações e conexões humanas para desenvolvermos e experienciarmos as nossas afetividades. A porta para a amorosidade penetrar precisa estar disponível, aberta de ambos os lados; precisamos construir pontes humanas de afeto, de carinho, de atenção, de cuidado. A felicidade que tanto se aspira e se busca deve ser nutrida pelo bem comum, pelo bem viver que alcance a todos e todas.

O clássico livro As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Charles Lutwidge Dodgson, publicado em 1865 sob o pseudônimo de Lewis Carroll, traz uma abordagem interessante sobre o tempo, quando afirma: Dizem que o tempo resolve tudo. A questão é: quanto tempo? Problematizando essa noção de tempo, questiono quanto tempo precisamos esperar ainda para entendermos a importância da afetividade nas relações humanas? Na vida?  Alice pergunta ao Coelho: Quanto tempo dura o que é eterno? O Coelho responde: Às vezes, apenas um segundo. Estamos oportunizando esse tempo de qualidade para vivermos as nossas afetividades, amorosidades, aprendizagens, alteridades? Estamos nos permitindo e possibilitando ao outro esse tempo?

As utopias modernas trazem a perspectiva do “mundo perfeito”, como afirma Zygmunt Bauman, na obra O mal-estar da pós-modernidade, como um mundo que permanece sempre idêntico, do mesmo jeito, imutável, fixo. Onde as habilidades, conhecimentos, sabedorias conservam sua utilidade para sempre, sem alterações, ajustes. Existe no paradigma da modernidade uma ideia de vida permanente. O mundo moderno, retratado nas utopias, se apresenta como um mundo transparente, em que nada de obscuro, impenetrável, se colocava no olhar. Nada estava fora do lugar, um mundo previsível, sem estranhos. A transparência, para o filósofo coreano, Byng-Chul Han, na obra, A Sociedade da Transparência, é um conjunto de condições de simetria. A sociedade da transparência busca eliminar todas as relações assimétricas (2017, p.5), buscando retirar as características identitárias das pessoas, desindentificando-as, aprisionando-as e homogeneizando-as num único invólucro.

A sua vida se assemelha à rapidez de um piloto de fórmula um para chegar ao pódio.

O sujeito pós-moderno é convidado a adentrar em um mundo que lhe cobra auto desempenho. Na sociedade do desempenho, trazida por Byng-Chul Han, além de o sujeito precisar ter um desempenho altamente produtivista, ele passa a se auto gerir de forma que concebe a ilusão de autocontrole, de liberdade, porém, ser livre na sociedade do desempenho é se autoflagelar com as multitarefas até chegar ao adoecimento, como ansiedade, tristeza, cansaço extremo ou mesmo depressão, Síndrome de Burnout, fobias, síndromes do pânico, entre outras patologias. A sua vida se assemelha à rapidez de um piloto de fórmula um para chegar ao pódio. Tenho pressa, estou ocupado demais, não tenho tempo, tenho muitas coisas para fazer são as tônicas do discurso do sujeito do desempenho. Esse sujeito do desempenho precisa ser flexível, produtivo, ser um consumidor capaz de adentrar no ideário do pensamento capitalista. Quem não tem o poder de consumir é descartado da sociedade da produtividade, da sociedade líquida, nas palavras de Zygmunt Bauman. Dessa forma, os laços interpessoais, os laços humanos afetivos se fragmentam, cada vez mais, em cadeia, por meio da lógica capitalista sob a égide do neoliberalismo que visa o ter para ser, num loop interminável.

Alice no País das Maravilhas afirma nas suas vívidas experiências: “quando acordei hoje de manhã, eu sabia quem eu era, mas acho que já mudei muitas vezes desde então”. Aceitando e reconhecendo a impermanência da vida, pois é importante nos vermos como seres multidimensionais, que mudamos permanentemente, em que a vida se apresenta para nós como “uma caixinha de surpresas”, como diz uma amiga. A vida é o encontro com o inesperado, também um campo de incertezas, mas sobretudo de possibilidades, um devir… nada está ´pronto, acabado, somos seres inconclusos. Dessa forma, por meio dos encontros humanos, nas nossas relações com a vida, com os seres, temos a oportunidade de estabelecer diversos entrelaçamentos que produzam outros tecidos sociais, com mais afetividades e mais humanidades. Eis aí outras possibilidades. Dialogando com os escritos do professor e escritor, Nelino Azevedo de Mendonça, em seu artigo “A utopia de Paulo Freire é um ato de amorosidade”, veiculado no blog falouedisse.blog.br, afirma que “a pedagogia de Paulo Freire reconhece na inconclusão do ser humano a grande virtude da humanidade. É pela nossa condição de sermos inconclusos que a história é sempre possibilidade, um permanente mover-se”. Assim, a vida e a historicidade humana são um permanente fazer, refazer, significar, ressignificar, um vir a ser, somos uma história sempre em construção.

O escritor Nelino Azevedo aborda, também, a utopia como esperança, como movimento, como feitura no espaço de luta pela construção de uma outra humanidade que reconheça e efetive a dignidade humana, uma existência com alteridade, em constante processo de humanização. A utopia é ressignificada como um ato de amorosidade pelo referido escritor. Nesse devir, aspiramos que o afeto seja esse laço que une a todas e todos, que floresça a amorosidade fortalecendo uma humanidade que acolha as diferenças, que reconheça as diversidades como inerentes à condição humana, que cada olhar seja um encontro de responsabilidades com o outro e com todos, como ensina tão bem Emmanuel Lévinas com a sua ética da alteridade.

O que estamos fazendo com nossas vidas? Qual o nosso compromisso como seres humanos na terra, ou quais os compromissos? Essas questões precisam de respostas. O filósofo Emmanuel Lévinas diz que a justiça nasce do amor. Assim, é por meio do amor, da amorosidade, da afetividade que aspiramos por justiça social, por equidade, por uma sociedade justa e equânime, onde todo ser humano seja respeitado, cuidado e feliz. É esse sentimento de amor que nos torna nobre, generoso, compassivo e justo diante da vida, das outras pessoas, do cosmo.

Os direitos humanos contra-hegemônicos são aqueles que lutam por uma sociedade equânime, que objetivam as mudanças estruturais da sociedade que de forma distorcida produzem sofrimento, dores, injustiça nos seres humanos. Compreendo que ao aprendermos o caminho utópico da amorosidade, como possibilidade de justiça social, de enxergar todo ser humano como parte integrante de toda a humanidade, sairemos desse plano físico com o dever de casa cumprido.

Quantos sonhos estão no fiar dos tecidos que nos vestem?

Nós não estamos aqui sozinhos.  Para que as coisas aconteçam de forma dimensional, muitos seres estão envolvidos como uma engrenagem humana. Vários fios se conectam para que a humanidade respire, viva. Nada chega até nós e nem nada que nós façamos são resultados de ação única de uma só pessoa. Quantos movimentos acontecem para que chegue água potável até nós e aplaque a nossa sede? Quantas mãos manuseiam o nosso alimento para saciar a nossa fome? Quantos sonhos estão no fiar dos tecidos que nos vestem? Quanto suor escorre nas faces dos diversos trabalhadores que alimentam a infraestrutura social para que a humanidade continue existindo? Quantos sonhos, quantas vidas são ceifadas pelo descaso, desamor, descuido, desrespeito, desumanidades?

Somos interdependentes. A fragmentação humana, o individualismo só nos fragiliza, nos faz adoecer e nos coloca em permanente campo de batalha. Já é tempo de vivenciarmos os afetos. Podemos, como diz o Coelho, em Alice no País das Maravilhas, eternizar os minutos, os segundos por meio do amor. Nossas vidas podem ser um acordo de amor. E o afeto balizar nosso tempo finito na terra. Descomplicar pode ser uma possibilidade, na utopia da amorosidade, por uma vida mais simples, mais humana, mais justa. O músico Lenine me auxilia nesse encerrar sem finalizar, com um fragmento da sua música, Simples Assim: “ É, eu ando em busca dessa tal simplicidade/ É, não deve ser tão complicado assim/ É, se eu acredito, é minha verdade/ E é simples assim.” A vida é um aprender e reaprender permanente. Contudo, escolhendo por compartilhar afeto e parte do tempo de cada um,com todos e todas, a experiência humana pode ser mais simples assim.

*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. SEDE/Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco. Escreve às quintas-feiras.