O inédito viável de Paulo Freire exige uma consciência crítica

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 23.12.2020

São os saberes que fazem os sabores ainda não experimentados. É isso o que podemos chamar de inédito viável: experimentar o nunca experimentado. Alcançar o inatingível. Realizar o irrealizável. Somente nas águas da utopia e da esperança se torna viável o inédito. É pela fé que nos tornamos, que nos fazemos, que nos superamos. Mas, não uma fé que miopiza e faz trilhar pelas veredas dos fundamentalismos; não uma fé que ensurdece ou faz ceder ao canto mítico das sereias. Ou uma fé que nos ata aos grilhões que nos eterniza na caverna de Platão. Não uma fé fugaz, de interesses imediatos nos bancos de igrejas. Não uma fé alicerçada numa ideologia cega que só enxerga a si.

Falo de uma profunda fé que nutre o coração e o espírito e se fortalece nas asas da liberdade que voam sempre mais alto para realizar os sonhos dos desvalidos, dos injustiçados, dos oprimidos. Sonhos que só se concretizam quando nos reconhecemos nas outras pessoas, porque já não temos dúvidas de nossa crença em nosso semelhante. É pela crença profunda no ser humano que, concretizamos, como diz Martin Buber, “a relação entre o ser humano, Deus e o mundo”, pois a realização do inédito viável é um ato coletivo.

É dessa forma que podemos transpor uma situação-limite; superar uma barreira que nos parece intransponível; abrir uma janela numa condição de vida que, aparentemente, parece-nos não ter saída. Superar uma situação-limite é a possibilidade que temos de não nos adaptarmos a uma condição de vida que elimina a nossa alteridade e desumaniza a nossa existência, pois toda situação-limite é uma convocação para transformar o mundo e torná-lo mais humano e toda vez que tornamos o mundo mais humano estamos concretizando uma utopia. É isso o inédito viável.

Os atos limites são movimentos que nos permitem sair das situações-limites e alcançar o inédito viável.

Transformar o mundo e torná-lo mais humano exige de todos nós ações que nos mobilizem a alma e o coração; carece de atitudes que rompam a nossa zona de conforto e nos enderecem aos atos limites.  Atos limites são as nossas atitudes. São as nossas ações que confrontam as situações-limites e nos possibilitam superá-las na intenção do inédito viável. Os atos limites se concretizam pela práxis transformadora das distorções cotidianas da nossa condição existencial; pela superação das diversas formas de interdição da vida que nos proíbem de realizarmos as nossas possibilidades para o ser mais, para o mais humano. Os atos limites são movimentos que nos permitem sair das situações-limites e alcançar o inédito viável. Atos limites são fundamentalmente atos de amor. Amor que exercitamos pelo próximo quando nos entregamos aos desafios de lutar em defesa dos desvalidos, dos necessitados, dos que carecem de um abraço firme para se manter caminhando.

Vivemos tempos difíceis em que somos diariamente colocados em condições de desafios extremos que ameaçam a nossa humanidade. Esses desafios extremos são as situações-limites que se colocam em nossas vidas e para transpô-los precisamos de ações concretas que nos levem à sua superação e, dessa forma, alcançarmos o inédito viável. Paulo Freire afirma que a eliminação da opressão desumanizante, ou seja, a superação das situações-limites, através da práxis humana, possibilitará a concretização do inédito viável (que Freire denomina de possibilidade “não experimentada”, no livro Conscientização), que é a própria vivência de situações de humanização. Todavia, é preciso esclarecer que Freire vai buscar o sentido que atribui para o termo situação-limite, em Álvaro Vieira Pinto, importante filósofo do Brasil a quem Freire chamava de “mestre brasileiro” que, de fato, é quem primeiro utiliza essa expressão no sentido considerado acima, no livro Consciência e Realidade Nacional. Rio de Janeiro, ISEB, 1960, vol. II, p. 284 (referência bibliográfica citada por Freire em Pedagogia do Oprimido).

Podemos apreender no pensamento freireano que a concretização do inédito viável exige um nível de consciência crítica suficiente para captar a realidade e nela intervir. Em Paulo Freire o percurso que faz a consciência, através das suas possibilidades históricas, tem início na sua intencionalidade (direção para o mundo); chega ao segundo momento, que é a objetividade (senso comum); atinge o terceiro momento, que é a criticidade (saber científico) e finalmente alcança a transcendentalidade (ação transformadora). Esse quarto movimento que a consciência desenvolve, enquanto ação transformadora pode ser percebido na pedagogia de Freire como a concretização do inédito viável, com o qual o ser humano supera uma condição de impedimento para a realização de sua humanização, estabelecida por uma determinada situação-limite. Verifica-se, então, na pedagogia freireana, a presença de características da fenomenologia, sendo que ao considerá-las na elaboração da sua proposta político-pedagógica, Freire ressignifica e incorpora novos conceitos históricos e culturais da estrutura social estabelecida em sua própria realidade.

Dessa maneira, pode-se perceber a influência da fenomenologia no pensamento freireano, principalmente no que diz respeito aos conceitos e tipos de consciência por ele definidos, que são a consciência semi-intransitiva, que está condicionada pelas estruturas sociais, e, por isso, é uma consciência dependente, resultando, daí, um estreitamento de seu poder de captação e percepção do mundo; a consciência ingênua, que revela uma certa simplicidade na interpretação da realidade, não ultrapassando o nível do senso comum e, finalmente, a consciência crítica, que se caracteriza não apenas pela captação da realidade, mas também pela profundidade em suas análises e pela capacidade de dar respostas aos problemas (FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. São Paulo, Cortez/Instituto Paulo Freire, 2001. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra 2003a. Educação e mudança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979).

A conscientização é um processo contínuo que exige a superação de uma esfera espontânea de entendimento para uma posição epistemológica, que vai possibilitar uma atitude crítica diante da realidade. Porém, não é apenas isso, pois implica, também, o ato de ação-reflexão, como atitude transformadora do mundo. Não existe conscientização fora da práxis. Freire vai buscar na fenomenologia uma importante contribuição para explicitar a sua estrutura argumentativa em torno do seu conceito de conscientização, como podemos perceber nessa afirmação: “quanto mais conscientização, mais se ‘des-vela’ a realidade, mais se penetra na essência fenomênica do objeto, frente ao qual nos encontramos para analisá-lo” (Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo, Moraes 1980, p.26).

Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.

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