Natal com o coração

Por

Vera Lúcia Braga de Moura*

Em 24.12.2020

“Se a gente cresce com os golpes duro da vida, também podemos crescer com os toques suaves da alma”.

Cora Coralina

Pensar no Natal é lembrar de infância, das amizades, amorosidades e comunhão. É quando, a meu ver, os seres humanos estão mais receptivos, sensíveis para as interações, as afetividades e a possibilidade, sobretudo, de a pessoa ser vista com os olhos do coração. Na nossa cultura, o Natal representa o nascimento de Jesus. As festividades ocorrem, geralmente, com trocas de presentes, celebração em torno da mesa, onde comumente as famílias se congratulam. Nessa época, ocorrem confraternizações diversas de trabalho, de amigos, de familiares, de grupos variados. É quando as pessoas se tornam mais sensíveis a outras. Mobilizam-se para envios de mensagens fraternas e de congratulações. Há uma aura gregária; as pessoas vivenciam nesse período momentos de afetividades uns com os outros. Há uma energia contagiante que possibilita conexões humanas mais compassivas.

As comemorações natalinas estão relacionadas a nossa ancestralidade. Nós somos seres muito ritualistas, e as festividades do Natal seguem um rito relacionado às festas pagãs da antiguidade, que é o advento da chegada do inverno celebrado com rituais festivos. Os romanos, com a consolidação do Cristianismo, a partir do século IV, oficializam a festividade do solstício de inverno como o Natal do Senhor. Como não se sabe ao certo o dia em que Jesus nasceu, essa foi uma forma de cristianizar as festas pagãs romanas, dando-lhes uma nova representação. A escolha da data foi determinada pelo Papa Julius I (337-352) e, mais tarde, foi declarado feriado nacional pelo Imperador Justiniano, em 529. Relaciona-se, também, o aniversário de Jesus no dia 25 de dezembro, nascimento do deus Persa Mitra, que representava a luz e, ao longo do tempo, essa divindade se tornou muito respeitada pelos romanos. Quando o Cristianismo se tornou a religião do Império, essa data passou a ser atribuída ao nascimento de Jesus. No período dessas festividades, havia o hábito de as pessoas se felicitarem, comerem e se presentearem, daí as origens das celebrações natalinas, atualmente, agregando mais significações.

Interessante como é construído o imaginário da criança.

Assim, falar e comemorar o Natal tem a ver com nossas historicidades, com nossas ritualísticas. Lembro-me que quando era criança o significado do Natal estava atrelado ao Papai Noel. Interessante como é construído o imaginário da criança. Eu acreditava, porque tinham me dito que Papai Noel era quem trazia nossos presentes na noite de Natal. Para mim, essa era a noite mais esperada naqueles tempos e para muitas crianças, penso, considerando as várias e díspares infâncias, em que nem todas as crianças vivenciaram e nem vivenciam na atualidade o mesmo significado do Natal. Contudo, rememorando minhas lembranças da infância, me vem à tona a tão esperada e desejada noite de Natal. Depois das celebrações de praxe, era recomendado que fôssemos dormir, pois seria depositado embaixo da nossa cama o imaginado e prometido presente de Natal, trazido pelas mãos de Papai Noel, em sua charrete, com as enormes barbas brancas, o clássico traje vermelho, com botas pretas, bochechas vermelhas e semblante rechonchudo. Era o adorável velhinho que só trazia presentes para crianças obedientes e estudiosas. Assim aprendi.

Um dia, em uma noite de Natal, lembro-me que violei as recomendações de minha mãe e fiz de conta que dormia, mas, por debaixo dos lençóis, buscava uma brecha e, muito bem acordada e sempre atenta a qualquer barulho, olhava para o teto a procura de Papai Noel, com sua sacola de presentes.  Considerava ser esse o momento para ver o Papai Noel e flagrá-lo depositando meu presente embaixo da cama e dar aquele abraço. Esperei insone e o Papai Noel não veio. Muito desapontada, adormeci já no raiar do dia, achando que por alguma “desobediência” que pudesse ter cometido não teria o tão aguardado presente de Natal. No entanto, para minha surpresa, ao acordar, cabisbaixa, vi a festa de meus irmãos com seus brinquedos, e fui questionada por que não estava com o meu presente, e sem entender nada, minha mãe dizia para eu pegar o meu presente. Estava tudo muito confuso, e eu, atônita argumentei que não havia ganhado presente nesse Natal. Minha mãe insistia para eu olhar embaixo da cama. Fui, desacreditada, já convicta de que eu não teria sido contemplada com o sonhado presente. Contrariando as minhas expectativas, espantosamente, lá estava o meu presente. Se já estava confusa, essa sensação se ampliou e, sem alternativa, só me restava, diante da minha incompreensão, confessar para minha mãe que havia ficado acordada a noite toda para ver Papai Noel entregando o meu presente e ele não havia aparecido. Daí, indaguei acerca do aparecimento inexplicável daquele presente. É como se o presente não tivesse mais aquela magia, havia quebrado o encanto.

Minha querida mãe, com toda paciência, hoje eu percebo claramente isso, disse-me que realmente tinha sido informada por Papai Noel que eu tinha dado muito trabalho para ele, e que quase iria retornar com o meu presente, pois eu estava espreitando ele e isso não era permitido. Foi preciso ficar me observando por horas e, em um momento de um descuido meu, o Papai Noel agiu rápido e colocou o presente embaixo da minha cama, mas que havia dito para minha mãe que, da próxima vez, se isso ocorresse novamente, eu poderia ficar sem o presente de Natal. Bem, levei um “carão” da minha mãe, mas a alegria e a magia em torno do Papai Noel voltaram, desculpei-me com minha mãe e obviamente prometi nunca mais tentar espionar o Papai Noel.

Quais sonhos eu teria agora na noite de Natal, o que imaginar, qual referência iria colocar no lugar do bondoso Papai Noel?

Minha saga com o Papai Noel não terminou. Essa história de que eu estava espionado o Papai Noel foi motivo de muitas conversas e comentários na escola, já que contara a dita história para todas as outras crianças. Sempre fui muito falante. E me achava muito esperta. Numa dessas conversas, uma outra criança muito mais esperta do que eu, ao ouvir minha narrativa de bisbilhotar a entrega de presentes de Papai Noel, e afirmar que quase o havia flagrado colocando o presente embaixo da minha cama, a menina sorriu horrores, gargalhava ininterruptamente. Eu nada entendia. Ela começou a bradar para todas e todos ouvirem que eu era uma bobalhona, pois não existia Papai Noel e que quem colocava os presentes embaixo da cama era o meu pai, esse era quem comprava os meus presentes. Não existia Papa Noel. Lembro-me das lágrimas rolando pela minha face. Era um misto de tristeza, vergonha, decepção, indignação. Como eu pude ser enganada. Fiquei desolada. Meu mundo infantil estava ameaçado. Só pensava em chegar em casa para minha mãe esclarecer se aquilo era verdade. Perguntei para minha mãe sobre a descoberta na escola. Ela confirmou e me explicou que aquilo fazia parte do universo infantil, que realmente os presentes era meu pai que comprava, mas que não diminuía o seu valor. Houve conversas com meu pai. No entanto, confesso que uma desilusão se instalou definitivamente no meu ser. Quais sonhos eu teria agora na noite de Natal, o que imaginar, qual referência iria colocar no lugar do bondoso Papai Noel? Esses os questionamentos que ficaram me assombrando.

Nessa perspectiva, fui descobrindo um novo mundo, sem papal Noel, sem a insondável magia, onde, também, eu não era a mais esperta da turma. Outros saberes estavam para além da minha compreensão infantil. Mesmo assim, o Natal, apesar de outra configuração, não perdeu o seu brilho e seu encanto, uma vez que também aprendemos a superar os revezes da vida. Recordo-me, com muita alegria, do Natal da minha infância e que até hoje tem um sabor todo especial. Gosto do Natal, porque é quando chegamos muito perto da outra pessoa, quando enxergamos melhor e alargamos também nossas visões de humanidades. O mês de dezembro é o mês de confraternização, de entrelaçamentos humanos, por isso, considera-se o mês de amorosidades, de encontros e reencontros, de troca de mensagens, presentes, não aquele presente produzido pelo consumo capitalista, mas o presente que significa amorosidade, em que o amor se ancora.

O Natal é muito propicio para esses encontros humanos, encontros de energia, encontros de almas.

Esse ano teremos um Natal muito especial, momento de crises: pandêmica, social, política, ética, e sobretudo, humana. Assistindo a uma fala de Marcia Baja, arquiteta, professora de terapias contemplativas, com perspectiva budista, ela ensina que reverenciar é bem-dizer. Desse modo, que tudo seja bem-dito. Ela diz que devemos acolher, abençoar o que foi vivido. Reverenciar 2020 é entender questões que precisavam ser vistas, compreendidas e situações que foram vividas e que precisam ser acolhidas sem achar que deveriam ter sido de outra forma. Essa foi a maneira que deu para ser. E, nessa direção, temos o compromisso de deixar o mundo mais calmo, melhor; para isso, precisamos nos reelaborar como pessoas melhores, respeitando e amando a humanidade que somos. Precisamos aprender a não maltratar os seres, promover encontros entre as pessoas, senti-las, vivenciá-las, amá-las, encantá-las. O Natal é muito propicio para esses encontros humanos, encontros de energia, encontros de almas.

Somos seres de relações, precisamos aprender a nos responsabilizar por nós e pelos nossos pares. Enxergar melhor a Terra, as pessoas, todos os seres vivos, observar a conexão das coisas, da vida. O encanto está na vida, nos seus mistérios e encontros, mesmo os desencontros, e nunca no consumo desenfreado e adoecedor. Pessoas integradas, ensina Marcia Bajo, não precisam consumir muito. Precisamos qualificar nossas vivências e não as quantificar. Precisamos pausar. Somos muito apressados e vivemos sempre correndo. O Natal promove essa pausa, esse desacelerar necessário para nossas saúdes mentais e espirituais. Com delicadeza, a gente vai se movendo melhor pela vida, tocando, atitudinalmente as pessoas de forma mais suave e respeitosa.

Vamos nos abençoar nesse Natal, visando e vibrando uma energia de paz, amorosidade, bem-viver e bem-dizer. Lembrar das minorias, daqueles que o sistema exclui, maltrata, desumaniza; enxergar a pessaoa idosa com dignidade e respeito; as mulheres, as crianças. Vamos enfrentar e combater o racismo com urgência. Da mesma forma, a lgbtfobia, as injustiças sociais – todas elas -, a discriminação contra os povos indígenas e às populações tradicionais. É preciso incluir todas e todos, e não deixar ninguém para trás.

O Natal é celebração da vida, nascer, bem-dizer, abençoar. Que façamos desse evento um rito de esperança, de renovação de acordos humanos. O professor e escritor Nelino Azevedo, nos seus textos, ensina que a utopia e a esperança são atos de amor. Lembra-nos que o inédito viável ensinado por Paulo Freire é uma convocação para transformar o mundo, torná-lo mais humano e sempre que tornamos o mundo mais humano, reconhecendo as alteridades, estamos efetivando uma utopia. Muito bonito isso que nos traz o referido escritor.

Que esse Natal de 2020 seja renovador para todas e todos nós, em que a esperança e a utopia sejam guias para promovermos mudanças saudáveis, amorosas e respeitosas no mundo, nas nossas relações. Carlos Solano, arquiteto, terapeuta ambiental e escritor, fala brilhantemente sobre a nossa casa como segunda pele. Ensina sobre abençoar a nossa casa, a nossa vida. Traz na sua fala a força das avós, como a força do cuidado. E diz sobre a importância de se escutar a voz e a sabedoria das avós. Lembro-me que a minha avó materna dizia que “ingratidão tira a feição”; grande sabedoria. Quantas vezes nos desafeiçoamos por ingratidões decorrentes das nossas relações interpessoais? Mas, podemos ressignificá-las, e a utopia nos possibilita enxergar as outras pessoas, mesmo as que desafeiçoamos com os olhos do coração. E o rito do Natal é um espaço de renovação, ressignificação.

A ceia de Natal é recheada de afetividades.

Solano diz para enxergarmos as avós na presença da cultura popular. Olhar para os significados das benzedeiras, rezadeiras, parteiras, bordadeiras, quituteiras, etc. Um bolo muda as relações. Lembro-me do bolo da minha avó e da minha mãe, os melhores bolos do mundo. Comida é também carinho, amor. Comer com quem você gosta faz toda a diferença. Já repararam nisso? Assim, como as pessoas, os lugares dotam a comida de sentidos. A ceia de Natal é recheada de afetividades. Esse arquiteto ainda observa que quando se coloca um bordado na mesa, muda aquele espaço, constrói-se outro significado. Lembro-me dos enfeites de Natal nas casas, nas ruas, nas cidades, nos lugares. Gosto das luzes e cores de Natal. Solano ensina que existem várias formas de abençoar, por meio de uma flor, um ramo, um objeto. Quando trazemos flores para casa, por exemplo, estamos estabelecendo uma conexão com a natureza, estamos abençoando aquele lugar. A casa tem também uma linguagem, um registro, um dizer.  Um objeto que colocamos num determinado lugar diz algo sobre nós e sobre nossa morada. Ele diz para limparmos nossa casa e perfumá-la, abençoá-la. Convido a todas e todos para abençoar as nossas casas, nossas vidas, esse presente fabuloso que é a vida, com muito amor por nós mesmos, pela natureza, pelas pessoas, por todos os seres.

Desejo que esse Natal seja uma ode ao amor, uma benção à humanidade. Como diz a poetisa Cora Coralina: “Se a gente cresce com os golpes duro da vida, também podemos crescer com os toques suaves da alma”.

Feliz Natal.

*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. SEDE/Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco. Escreve às quintas-feiras.

Foto destaque: Elo7