A conjugação freireana do verbo esperançar

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 30.12.2020

Vivemos em uma sociedade que experenciar o inatingível só é possível na ação do verbo esperançar. Esperançar é a atitude da não espera. É o movimento dos passos que coreografam a dança da transformação pelo bem comum. É o corte insistente da esgrima que sutilmente vai dilacerando a força bruta da intolerância contra os diferentes. É a sede que vai encontrando a água que rega e sacia os sonhos ávidos por justiça e, portanto, não os deixa morrer. É o alimento que fortalece a alma dos esquecidos, esfarrapados e abandonados e que, por isso, não se perdem em sua fé. Esperançar é saber que toda caminhada precisa do primeiro passo para se fazer jornada. É saber que não há comportas que limitem as águas quando os riachos se unem com destino aos açudes. É saber que são os sonhos que alicerçam a construção das cozinhas, onde se faz com saberes os sabores nunca antes experimentados.

A esperança só tem sentido quando não é espera, quando não é amofinamento de entrecruzar de braços, num aguardar eterno como se o inexorável fosse o nosso destino. Esperança é possibilidade; é força motriz que faz a roda girar; é pólen-semente que faz a vida gerar; é energia que alimenta os pés nas marchas que clamam por dignidade. A esperança se alimenta da fé, tanto mais acreditamos que somos do tamanho de nossos sonhos. Então sonhar é conjugar o verbo esperançar para a realização da utopia. A utopia que concretiza sonhos e nos torna mais humanos.

Esperançar como ação de quem se sabe na luta, de quem compreende que é modificando o seu lugar, quando seu espaço não é um lugar de justiça e fraternidade, que se conquista a tão necessária e imprescindível dignidade para se viver uma vida mais humana e feliz.

A esperança tem seu nascedouro na eterna busca pela nossa humanidade. É na inconclusão do ser humano que a esperança se multiplica como força motriz capaz de alimentar a luta dos desvalidos pela restauração de sua humanidade. Por isso, o verbo esperançar deve ser conjugado, fundamentalmente, no tempo-espaço do nós, do coletivo, do compartilhamento. A inquietação que se coloca em nossas mãos como tarefa do nosso inacabamento deve se alimentar de uma profunda fé na busca pela libertação e necessita de uma dimensão crítica capaz de perceber o mundo, compreendê-lo e modificá-lo, caso seja necessário.

O verbo esperançar é acima de tudo um verbo dialógico. Não há esperança sem diálogo. O ser humano dialógico é essencialmente um ser de esperança, pois se nutre de uma crença de que é na comunhão com outros seres humanos que ele pode modificar a sua realidade e torná-la mais justa. Transformá-la a seu favor na intenção de um mundo mais humano. Nada disso será possível se não há diálogo e só há diálogo quando as pessoas vivenciam entre si uma intensa fé. Se o ser humano não acredita no outro ser humano, não alimenta uma necessária fé no seu semelhante, perde-se completamente a possibilidade do diálogo e sem diálogo a esperança não passa de espera, e a relação que se estabelecerá a partir daí não passará de um monólogo vertical e opressor, promotor de injustiça, exclusão, ódio e desamor. Como afirma Paulo Freire na Pedagogia do Oprimido: “Se o diálogo é o encontro dos homens para ser mais, não pode fazer-se na desesperança. Se os sujeitos do diálogo nada esperam do seu quefazer, já não pode haver diálogo. O seu encontro é vazio e estéril. É burocrático e fastidioso” (1987, p.82).

Esperançar é também conjugar o verbo amar, sabendo que fora do amor a esperança é apenas espera.

Então, esperançar é caminhar na direção dos que marcham no caminho da resistência por uma vida mais justa e cidadã, dos que se contrapõem aos horrores que afrontam e dilaceram a dignidade e a vida dos seres humanos e da natureza, dos que se colocam nas fileiras da frente na luta contra a discriminação, a invisibilidade, a exclusão e as intolerâncias étnico-raciais e as diversas formas de lgbtfobia. Esperançar é formar trincheiras contra as violências e o extermínio da população indígena, dos animais e do próprio planeta. É se posicionar em defesa da vida e da dignidade humana. Esperançar é também conjugar o verbo amar, sabendo que fora do amor a esperança é apenas espera.

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.

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