De quando as palavras não são suficientes
Enildo Luiz Gouveia*
Em 31.12.2020
A indignação e a inspiração são dois sentimentos humanos que nos deixam inquietos e estáticos. Inquietos porque a mente borbulha de ideias e situações. Estáticos porque nem sempre as palavras dizem tudo que temos para dizer. Elas findam sem conseguir dizer tudo. Parece que quanto mais escrevemos, falamos, mais coisas temos pra falar e escrever. A erupção dentro de nós não nos dá sossego. É mal de poeta, mal de militante. Uma enfermidade criativa que nos sufoca.
Neste ano de 2020 e principalmente nestes últimos dias do ano me senti ainda mais infectado por esta enfermidade. Quando vejo os absurdos ditos e praticados pelo governante maior do nosso país, quando vemos o feminicídio em pleno Natal, as agressões da polícia em Palmares e em tantas outras periferias (sim, a polícia age na periferia de forma bem diferente como age nos bairros nobres. Reproduz o racismo que é tão negado pelo governo e pelas elites brasileiras). O negacionismo científico, a intolerância religiosa e o culto à morte violenta, me deixam mais inquieto, mais poético, mais impaciente e mais doente.
Para a sociedade brasileira parece ser muito mais interessante o futebol e a vida alheia que a política e os rumos do país. Deseja-se ganhar o prêmio da Mega Sena da Virada e ao mesmo tempo, se satisfaz com o salário de miséria que é fruto da exploração da sua Mais-Valia. Se algo de bom há nisso tudo é o humor. Mas como diria uma canção de Frejat “Rir de tudo é desespero”. Noutra canção dizia a Legião Urbana: “Quem roubou nossa coragem?”. Confesso que às vezes tenho a péssima impressão que se depender das massas, nada vai mudar. O que fazer então? Só o alimento da poesia, da fé e da indignação para poder continuar.
Aos poetas, a criatividade e a imaginação, a capacidade de ver o invisível. Aos militantes, a reinvenção constante sem perder os princípios. Todos nós somos um pouco de poetas, militantes, médicos e loucos. Uns na zona de conforto, outros no front das batalhas afetivas e sociais. Em tempos de distanciamento sanitário, ser esta metamorfose vivente pode ser a alternativa nos momentos em que as palavras não sejam suficientes. Que venha 2021 e que as palavras continuem vivas mesmo que às vezes afônicas, mas ainda assim, necessárias.
*Enildo Luiz Gouveia é professor do IFPE e membro da Academia Cabense de Letras – ACL. Escreve às quintas-feiras.
Foto destaque: correiobraziliense.com.br