SALA DE CINEMA – Terrence Malick encontra a história perfeita para seu cinema em “Uma Vida Oculta”

Por

Pedro H. Azevedo*

Em 0301.2021

No ensaio “A Origem da Obra de Arte”, Martin Heidegger investiga a origem da obra de arte e a consequente busca pela essência da arte. O filósofo alemão vai discutir e enxergar a obra de arte como um objeto que possui a capacidade de revelar a essência da verdade, a arte como algo que desvela o sentido das coisas presentes no mundo. Esta afirmação foi o que pareceu guiar o então estudante de filosofia Terrence Malick, graduado com a maior das honras na conceituada Universidade de Harvard, para o mundo do cinema. Na época, Malick estudava a filosofia de Heidegger, chegando a traduzir um livro do filósofo para o inglês e visitá-lo na sua famosa cabana da Floresta Negra, encontro intermediado por Hannah Aredt. O contato com o pensamento de Heidegger explicaria bastante coisas na vida e obra de Terrence Malick. Não é nenhum grande absurdo enxergar a escolha de Malick em se tornar cineasta como uma possível tentativa de, como Hölderlin escrevera e Heidegger se apropriara em seus escritos, “habitar poeticamente a terra” em busca de uma existência autêntica.

Desde o premiado A Árvore da Vida (2011), passando pelos três filmes posteriores, Amor Pleno (2012), Cavaleiro de Copas (2015) e De Canção em Canção (2017), Malick aplicava de forma radical um estilo próprio de contar suas histórias. A narrativa ordinária e comum com uma divisão de atos e uma estrutura linear com personagens e diálogos presentes na grande maioria dos filmes foi abandonada no cinema de Malick, dando espaço a construções poéticas que visavam profundas discussões filosóficas e teológicas cristãs sobre o sentido do ser, a busca pelo transcendental, a angústia da existência, o significado do amor e a relação do ser humano com o mundo. Uma estrutura poética que remete novamente ao pensamento de Martin Heidegger, que enxergava a poesia como a primeira e maior das artes, a técnica mais próxima da verdade do ser.

Nestes seus filmes, as histórias se desenvolviam muito menos por uma narrativa clara (com os três filmes depois de A Árvore da Vida gravados sem roteiros exatos) do que por uma tentativa de investigar de forma espontânea ou fenomenológica a realidade posta em tela. Tentativa esta que acabou mais desagradando o público e a crítica, que viam os filmes como obras que não passavam de monólogos interiores existenciais que serviam muito mais como uma justificativa para a materialização das já consagradas belas e impecáveis imagens que o diretor realiza desde sempre em seus filmes, em um texto muitas vezes inacessível para a grande maioria.

Foi em 2019, com o lançamento de Uma Vida Oculta, que Malick retornou as narrativas tradicionais. O retorno se deu não porque ele abandonou as suas idiossincrasias, mas porque ele encontrou a história perfeita para aplicar seu estilo cinematográfico e a cosmovisão que comandou seus últimos filmes sem a necessidade de fragmentação da narrativa.

Convocado para o exército nazista, Franz escolhe não ir e recusa jurar lealdade a Adolf Hitler.

Uma Vida Oculta vai contar a história real do fazendeiro austríaco católico Franz Jägerstätter e sua família. Eles viviam em um pequeno vilarejo rodeado por montanhas quando a Segunda Guerra explodiu. Convocado para o exército nazista, Franz escolhe não ir e recusa jurar lealdade a Adolf Hitler. Por conta disso, ele é preso como objetor do regime nazista e passa a sofrer torturas físicas e mentais. Enquanto isso, sua família passa a ser marginalizada e vítima de ataques da população local pela decisão tomada por ele. Se comunicando por cartas, Franz e sua esposa, Franziska, se apoiam no amor entre eles e na esperança e fé de que estão fazendo o certo perante a justiça divina para suportarem toda sorte de desgraças que o mundo deposita em suas vidas.

É dessa vida de martírio e do amor entre Franz e Franziska que Malick consegue encontrar o transcendentalismo cristão que seus filmes desta última década pareciam buscar incessantemente. Qualidade que coloca A Vida Oculta, junto com o já citado A Árvore da Vida e com os dois últimos filmes de Martin Scorsese, Silêncio (2016) e O Irlandês (2019), como os melhores filmes da década que discutem o cristianismo e seus conceitos fundamentais como graça, fé, caridade e justiça. Silêncio, inclusive, foi um filme que fez o recluso Malick — o diretor é conhecido por não aparecer em público e quase nunca dar entrevistas — se pronunciar. Após ver o filme de Scorsese sobre os jesuítas portugueses no Japão, Malick enviou uma carta onde questionava: “O que Cristo quer de nós?”. E de certa forma, Malick parece ter respondido a pergunta com seu filme.

Se nos últimos filmes a estética peculiar do diretor podia soar como um mero capricho ou fetiche, aqui todos os elementos se juntam para criar um efeito narrativo que potencializa a narrativa e seus questionamentos. O uso das lentes grande angulares que nunca isolam os personagens do meio que estão inseridos é imprescindível para que a luta deles contra o mundo (e eles enfrentam o Estado nazista, o governo local, a comunidade em que estão inseridos e até a igreja) seja sentida, assim como o destaque da presença da natureza como símbolo de um ideal de harmonia idílica, quase um Éden na Terra; a iluminação em luz natural que apresenta os espaços sem artificialidade ancoram eles dentro da realidade; a câmera e os atores que se movimentam como se procurassem pelo enquadramento capaz de desvelar o sentido do que está sendo mostrado, uma dança que integra toda a mise en scène de Malick em um sentido maior, em uma conjunção do ser com o mundo, representado na montagem que interconecta a natureza com as pessoas em uma unidade, uma força maior e transcendental que guia o espírito de Franz. Malick consegue explorar toda a poesia do seu estilo formado por esses elementos estéticos e um texto formado por longos monólogos internos, cartas íntimas e amorosas e orações de fé e esperança que procuram revelar o ser humano em seus momentos mais preciosos, ao mesmo tempo que narra a história de resistência, justiça, amor e fé da família de Franz, sempre com respeito e delicadeza.

Uma Vida Oculta é um filme sobre a coragem de encarar de frente a angústia da liberdade de escolher o que é certo em um mundo dominado pela injustiça e repleto de mistérios infindáveis. Franz, que foi beatificado em 2007 pelo Papa Bento XVI, e sua convicção de resistir à perspectiva predominante de sua realidade em nome do bem e da justiça, mostra a possibilidade de enxergar a verdade do mundo para além dos limites do contexto social e cultural, uma visão de mundo que enxergue a dignidade e presença do ser humano como figura central dentro da existência. Uma lição cristã, mas também socrática que Malick faz questão de citar em uma fala durante o filme: “melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la”; disse Sócrates, e depois Cristo e depois Franz.

Uma Vida Oculta está disponível no Telecine Play.

*Pedro H. Azevedo é concluinte de Engenharia Mecânica. Escreve e administra a página Um Toque de Cinema no Instagram. Escreve aos domingos.