Meu médico preto

Por

Eugenio Jerônimo*

Em 12.06.2020

Nunca fui atendido por um médico preto. Duvidei da constatação inicial. Podia estar enganado. Nunca, nenhum preto? Em nenhuma circunstância? Devia haver pelo menos um no percurso da minha saúde. Decidi revisitar meu currículo de paciente.

Menino das caatingas remotas do Sertão, vim ao mundo pelas mãos da minha vó. Mãos cuidadosas e pretas, que pegaram, como se fossem seus netos, algumas dezenas de crianças da região.

As doenças curáveis encontravam oposição em remédios naturais. Para coqueluche, lambedor de jatobá; trauma, água com casca de pau-ferro; gripe, chá de flor de sabugueira; ferimentos, babosa; inflamação, jurubeba; febre, eucalipto.

Tinha oito anos quando vi um médico pela primeira vez. Eu até sabia para que serviam, mas nunca, com meus próprios olhos, tinha visto um. Passei mal no fim da missa. Não sei o que foi, mas ainda agorinha sou capaz de sentir o desagradável cheiro da fumaça do incenso saindo como mágica das mãos do padre. Fui levado ao posto de saúde. A pressão estava normal, não havia nenhum sintoma de doença. O médico receitou apenas um pouco de repouso e palavras calmantes. Alguns minutos depois, eu já queria pular da cama alta e mais branca que leite. Disposto, precisava aproveitar aquela segunda de feira já que os meninos só vínhamos à cidade duas vezes por ano. O médico era um bom homem branco de olhos bem azuis e bem grandes. Eu pensava comigo, duas bolas de gude.

Pouco tempo depois, conheci o segundo médico. Ou muito cavalo, ou pouco cavaleiro, o fato é que caí da montaria. No hospital, o clínico se desdobrou em ortopedista e anestesista para colocar minha omoplata no lugar. O menino quase não tornou da anestesia, mas foi só um susto, e um mês depois já estava no lombo do animal. O doutor de seis mãos também era branco.

Dei uma década de descanso aos médicos. Só voltei a incomodá-los aos 18 anos, quando conheci o mar, chutei uma pedra e ganhei um ferimento renitente. Gentil e com senso de prioridade, o médico rebaixou minha ferida para simples tratamento de curativos regulares. Foi o terceiro médico, e o terceiro médico branco.

Hora do exame admissional, um médico branco. Veio a minha primeira filha, os bebês modernos de há muito já não chegavam ao mundo pelas mãos de parteiras como a sua bisavó. Lá estava o médico, seguro, uma presença sedativa para um pai debutante. Um médico branco.

Tornaram-se rotina os checapes anuais, com médicos brancos. O pai de segunda viagem estava tão tenso quanto o estreante. Mas os gestos da médica eram tão calmos que funcionaram como uma espécie de sedação. Uma médica branca.

O maior trabalho que dei aos médicos foi num infarto. Mas a coincidência de haver sido menos grave, o rápido socorro e a intervenção acertada desses profissionais, todos brancos, abreviaram minha estada no centro clínico. Após uma mínima semana, já estava em casa. Quatro meses depois, liberado para as aventuras futebolísticas e novamente potencial cliente de ortopedistas, todos brancos.

Tenho uma amiga que acerta a idade das pessoas considerando a quantidade de médicos com os quais elas se consultam fiel e regularmente. Na minha agenda de paciente, visito a períodos fixos cardiologista, gastro, otorrino e dermatologista, que além dos meus males já sabem meu time, meus filmes preferidos e, se brincar, até minha cor predileta. Todos brancos.

Infelizmente minha constatação inicial era verdadeira. Das emergências aos consultórios; dos procedimentos simples para aprumar um dedo de um inábil goleiro bissexto a uma intervenção mais complexa no coração que se estranhou com o colesterol e o estresse; da infância à idade madura, eu nunca fui atendido por um médico preto.

Na noite silenciosa, um caminhão se impõe entre freadas irrefletidas e aceleradas ansiosas. Da janela observo o gari numa espécie de jogo. Coloca os sacos de lixo na caçamba, deixa o motorista arrancar, então corre e o alcança se equilibrando numa perna só. Parece que nesse jogo é falta subir na carroceria com o carro parado ou firmar-se com as duas pernas. O gari é preto. Aí está o médico preto pelo qual nunca fui atendido.

*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria)

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