SALA DE CINEMA – “Tenet” é o melhor e o pior de Christopher Nolan de uma só vez
Pedro H. Azevedo*
Em 17.01.2021
Uma das principais marcas do cinema do britânico Christopher Nolan é a peculiar forma que o tempo se comporta em seus filmes. Em Amnésia (2000) a mente perturbada do protagonista faz a narrativa correr de trás pra frente Em O Grande Truque (2006) a leitura dos diários dos mágicos permite a não-linearidade temporal. Já em A Origem (2010) o tempo se comporta diferente da realidade no mundo dos sonhos. Em Interestelar (2014) é a relatividade geral que tira o tempo do seu comum. E em Dunkirk (2017) a própria estrutura narrativa é arbitrariamente conduzida em três histórias paralelas que progridem em tempos distintos.
Todos esses exemplos já mostram o nível de obsessão que Nolan tem com as possibilidades de manipulação temporal e criação de quebra-cabeças que a narrativa cinematográfica permite. É interessante notar que em cada filme o cineasta procura estabelecer conceitos distintos (psicológicos, neurológicos, físicos e narrativos) para “burlar” o tempo cronológico que o cinema de blockbuster costuma utilizar, e no seu mais recente filme, Tenet, não é diferente.
Em Tenet, um agente da CIA (John David Washington) é recrutado para uma missão hiper secreta que tem como objetivo livrar o mundo de uma destruição total. Para isso ele vai dispor de uma tecnologia misteriosa que manipula a passagem de tempo. Uma premissa simples e até mesmo clichê, mas que serve muito mais como pretexto para Nolan apresentar mais um de seus mecanismos temporais.
Assim como em Interestelar, Tenet também vai utilizar explicações físicas para a dinâmica da “viagem” no tempo presente, mas enquanto Interestelar trabalha a teoria da relatividade geral de Einstein, Tenet vai se basear no conceito termodinâmico de entropia e sua (im)possível reversibilidade.
De tudo que o diretor já fez até agora, Tenet acaba sendo o filme – para o bem e para o mal – que mais revela suas idiossincrasias. Com isso quero dizer que o que tem de melhor e mais genial, assim como os maiores defeitos de sua mise en scène estão presentes aqui com muito destaque. Comecemos pelos pontos positivos:
De todos os filmes de Nolan, Tenet é o que possui o jogo temporal mais fascinante e divertido de tentar entender e principalmente de assistir. Nolan parece se preocupar mais em criar essa dinâmica temporal pelas possibilidades cinematográficas que ela permite explorar do que por qualquer lógica narrativa ou impacto dramático mais profundo ou elaborado. Isso é tão evidente que o próprio filme se limita a explicar o mínimo necessário dos backgrounds e motivações dos personagens e dos lados em conflitos. O mistério está presente muito mais como ferramenta de esquecimento do que de prenunciação, e se concentra em explorar a ação proporcionada pelo mecanismo temporal. A trama então vai abusar de MacGuffins (objetos e objetivos de suma importância para os personagens, mas que não significam muita coisa para o espectador e que servem unicamente para mover a trama) e as poucas motivações expostas são tão genéricas e pouco convincentes que caem muito mais no campo do pretexto narrativo do que de uma construção cuidadosa de personagens.
Já as explicações (ou tentativas) de como funciona a dinâmica temporal do filme estão presentes, como é de praxe em seu cinema. Só que dessa vez Nolan parece saber que o excesso de didatismo é algo que deixa seus filmes maçantes para alguns espectadores e sabiamente já na primeira explicação científica do fenômeno joga um “disclaimer” no diálogo da cientista com o Protagonista, onde ela diz para ele não se preocupar em entender a lógica ou os fundamentos do que vai acontecer a partir daquele momento e apenas seguir os instintos. Com isso, é como se Nolan dissesse para nós que é possível não entender todos os pormenores da lógica por trás do que estamos vendo e mesmo assim nos entregarmos puramente a experiência cinematográfica proposta por ele.
Com uma fotografia impecável, uma mixagem de som estrondosa e altamente imersiva e uma trilha sonora que brinca com o ir e vir do fluxo temporal, Tenet hipnotiza com imagens surpreendentes e refinadas. Toda a sofisticação técnica do cinema de Nolan, aliado as elaboradas e insanas missões megalomaníacas que os personagens precisam realizar, são o ponto forte do filme. O encanto de Nolan sempre veio dessa junção entre conceitos interessantes que quebram a realidade — e por isso são tão deslumbrantes — e a aplicação deles dentro de uma trama simples combinado a um refinamento técnico que busca sempre o realismo, e em Tenet tudo isso chega ao seu ápice.
Agora, é intrigante como o cinema de Nolan consegue ser tão bom nos aspectos citados anteriormente e ao mesmo tempo ser tão pífio na construção dos personagens e na exploração emocional deles — e agora entro nos maiores defeitos. Se nos seus trabalhos anteriores Nolan já tratava seus personagens como meros títeres que conduzem seus conceitos e sequências grandiosas sem se preocupar muito com um desenvolvimento interno mais elaborado, aqui isso é algo escancarado. Mas o problema principal não é nem a falta de profundidade dramática dos personagens, mas sim a tentativa falha de criar esta profundidade. Em Dunkirk, seu filme anterior, Nolan criou uma narrativa minimalista, com isso ele se livrou da necessidade de uma construção psicológica mais profunda de seus personagens, dando lugar a uma construção mítica, algo que funcionou bem no filme e, pelo menos para mim, alcançou um impacto dramático poucas vezes visto em seu cinema (a cena do pai vendo os vídeos dos filhos em Interestelar também é um excelente exemplo de cenas emocionalmente impactantes dentro da filmografia do cineasta).
Porém, em Tenet ele vai para o lado contrário do que fez em Dunkirk e cria subtramas pessoais para seus personagens na tentativa de aprofundá-los e gerar empatia no público, mas isso só expõe sua limitação artística em lidar com dramas internos. Chega a ser engraçado que o personagem menos desenvolvido, Neil (Robert Pattinson), seja o mais fácil de se afeiçoar. Algo que acontece muito por causa do excelente trabalho de Pattinson e pelo personagem já carregar consigo as incertezas dramáticas comuns dos coadjuvantes. Por outro lado, é penoso ver Elizabeth Debicki tentando fazer alguma coisa com sua personagem em um arco sem pé nem cabeça e Washington se esforçando para que seu personagem funcione dramaticamente de alguma forma.
Nolan vai muito bem quando se concentra nas cenas de ação e na exploração dos conceitos originais e interessantes, mas quando parte para qualquer relação mais humana e emocional o seu filme desaba de forma desastrosa. No fim das contas, Tenet acaba sendo uma síntese do que foi toda a carreira do cineasta até agora: um cinema profundamente objetivo e lógico que nos fascina mais pela mente do que pela alma.
*Pedro H. Azevedo é concluinte de Engenharia Mecânica. Escreve e administra a página Um Toque de Cinema no Instagram. Escreve aos domingos.
Acho muito legal , Pedro, a construção dos seus textos e a sua narrativa de como o cinema pode mostrar através do mundo ficcional a arte da vida! Top!!! Parabéns!!! Seus escritos são show!!!
Poxa, Vera, fico muito feliz da saber disso. Muito obrigado!
Parabéns Pedro pelo belo artigo.
Muito bom.
Obrigado, Nelino! Abraço!