O triunfo da ciência

Por

Ayrton Maciel*

Em 19.01.2021

Temos vacinas. Pelo menos para quebrar a angustia e a aflição disseminadas no país por um governo que se repete em crimes de responsabilidade. Se crimes econômicos e de má gestão pública atingem em cadeia e gradualmente – às vezes, lentamente é que a população percebe -,  crimes contra a saúde pública têm consequências imediatas. Maus governantes são capazes de cometerem crimes contra a humanidade, por veleidade, desumanidade, intolerância e incultura extremadas. O Brasil vive um momento de inconsequência, atingindo o limite – provável – da Covid-19 em Manaus, resultado da prevaricação e da incompetência de gestores públicos.
É diante do caos que a esperança se fortalece. Temos vacinas (a autorização), apesar das resistências. A Anvisa, Agência de Vigilância Sanitária, em surpreendente posição de autonomia, aprovou a aplicação emergencial da CoronaVac e da Oxford/AstraZeneca. Uma vitória da ciência. Uma decisão alentadora para quem se sente sob o império de maus governantes. Uma autorização, explicitamente contra a vontade político-ideológica do presidente Jair Bolsonaro – o imunizante da Sinovac/Butantã era o alvo dos negacionistas -, que gera uma expectativa de menos mortes, menos contágio e o início da saída do atoleiro econômico e social do país.
A ciência triunfou. É extraordinário, porém o conhecimento irá sempre enfrentar o ódio e o boicote dos místicos pregadores do sobrenatural e dos incultos propagadores da distorção e do avesso. Podemos nos vacinar, mas onde estão as vacinas? Propositalmente atrasadas, assim como toda a logística necessária para a sua produção, preservação e distribuição. O improviso domina o início da vacinação, a partir da autorização concedida pela Anvisa, culpa partilhada entre a agência e um governo negacionista mal intencionado, que obstruiu a chegada de vacinas – por questões ideológicas (China e agora, Rússia) -, que nega a sua eficácia e que torce para que fracassem, e se sinta assim vencedor em suas sandices.
Temos a autorização e assistimos a uma disputa política por paternidade. Um escárnio sobre os brasileiros angustiados, aflitos, desolados ou em luto. Ex-aliado incondicional, que lucidamente se pôs a favor da ciência e da vida – no devido momento -, cabe ao impalatável e inconfiável governador de São Paulo, João Dória, o crédito pelo país ter hoje um mínimo de vacinas e uma autorização para a vacinação. Bolsonaro, que nega a eficácia, particularmente a originária da China, e disseminou pelas redes sociais a falsa eficácia de protocolos anticientíficos (hidroxicloroquina, ivermectina etc), agora é vencido pela ciência e se submete a uma vexatória derrota para Dória.
A ciência venceu, a vacinação começou, mas não temos vacinas. As seis milhões de doses compradas pelo governo paulista à Sinovac (China) são 3% da população. O blefe de Bolsonaro sobre os dois milhões de doses da AstraZeneca da Índia não tem data para ser revertido, uma paspalhada do governo que não pode ser escondida. Uma fake news oficial que agora depende da boa vontade indiana. Todavia, temos o fio da esperança – a autorização para vacinar – e jogamos todas as esperanças na produção em massa pelo CoronaVac/Butantã e a Oxford/AstraZeneca/Fiocruz. 
Se outras vacinas já foram autorizadas por agências, em seus países de origem, como a russa Sputnik V, sendo aplicada nos russos e argentinos, é criminoso negar ao Brasil a sua  aplicação emergencial, no momento de calamidade sanitária que vive o país. Esperar que se cumpram as etapas de pesquisas que foram cumpridas em outros países é ter que aguardar por meses e assistir dia-a-dia a morte de centenas de brasileiros. Essa tragédia não incomodará aos negacionistas, como não incomodou até o momento as 210 mil mortes, mas postergará a aflição, a angústia e o luto das famílias.
A CoronaVac e a Sputnik V pagam o preço do ódio ideológico que a Guerra Fria deixou como herança. Vidas não importam a extremistas. Não importa vacina não ter pátria e ciência não ter fronteira, se os “contra” negam a sua eficácia. Afinal, por ser chinesa ou russa as  vacinas mexem com o imaginário belicoso de Bolsonaro e de generais que não conseguem romper com 1964. A CoronaVAc e a Sputnik V povoam a cabeça de cegos ideológicos, fanáticos pentecostais, derivações da infâmia e apostadores no desvalor humano.
Começamos a vacinar, após o triunfo da ciência. A Anvisa se mostrou lúcida, descartando a palavra final a quem desacredita no conhecimento e reproduz a dúvida e o medo. Todavia se fez reticente ao barrar sumariamente a vacina russa. Um passo à frente, atrasado e lento, mas que abriu a esperança em meio à incerteza, que não pode ser anulado por um passo atrás. O que o país espera é que a Anvisa consolide a sua autonomia e sensatez. O Brasil precisa de todas as vacinas.
*Ayrton Maciel é jornalista. Trabalhou no Dario de Pernambuco, Jornal do Commercio e nas rádios Jornal, Olinda e Tamandaré. Ganhador do Prêmio Esso Regional Nordeste de 1991.
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Foto destaque: Após ser pioneiramente vacinada contra a Covid-19, enfermeira Mônica Calazans festeja ao lado do governador João Dória (SP). Internet