O flagelo da pandemia

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 18.01.2021

Havia eu preparado um texto sobre minhas preocupações com a educação das crianças e jovens que devem voltar às aulas neste tempo de pandemia invocando o pensamento de Anísio Teixeira, que defendia a universalização da escola pública gratuita e sem vínculo com nenhuma religião, com a municipalização do ensino e que as escolas se responsabilizassem pela promoção de cidadania e saúde. Mas fui despertada pelo desabafo de meu amigo Francisco Oliveira sobre como vivemos ou o que se impõe sobre nossas vidas as atitudes do presidente da República. A sua escrita nos atinge a todos, mesmo aos que votaram para eleger o atual presidente.

Segundo Chiquinho, apelido que ganhou de seu pai, grande economista Chico Oliveira, “o domingo que seria um dia para contemplar o tempo, estar com os amigos, filhos, parentes, descansando como prega a mais velha tradição, se transformou em mais um dia de angústia no qual refletimos sobre mais uma semana de descaso, sobre os casos de desprezo pela vida humana deste governo, deste presidente”.

Na última sexta-feira acompanhamos intensamente a situação na qual se transformou a cidade de Manaus, capital do Amazonas, estado maior do país, o qual abriga grande parte da floresta, por conta da pandemia que assola o mundo inteiro ”basicamente, porque houve um nível de negligência da população e das autoridades sanitárias em Manaus que acabou criando uma quantidade suficiente de contatos entre diferentes pessoas que levou a essa mutação. Não tenho certeza disso, mas é muito provável que se tivéssemos controlado apropriadamente a epidemia dois meses atrás em Manaus, não estaríamos falando dessa nova variante do coronavírus.” Assim se referiu o pesquisador da FIOCRUZ, Jesem Orellana, em entrevista à BBC.

Ali surgiu uma variante do vírus, a contaminação foi rápida, a capacidade de abrigo hospitalar não suportou a demanda por tratamento. Faltaram equipamentos, pessoal capacitado para o atendimento e oxigênio que mantinha os doentes vivos. O que se viu foi o resultado da tragédia que se anunciava desde fevereiro de 2020, quando surgiram os primeiros casos no país.

O governo federal se manifestou permanentemente pela negação dos efeitos que o vírus poderia causar à população. Mentiu, deturpando o que definiu a resolução do Supremo Tribunal Federal (STF) com relação à responsabilidade das três instâncias de governo (federal, estadual e municipal) pela execução de ações de saúde determinadas pelas normativas que regulam o SUS, afirmando que o Ministério da Saúde foi impedido de exercer a sua função de coordenação e articulação das medidas a serem tomadas.

Adotou essa postura porque nega a importância da ciência e faz refletir o seu pensamento expressado nas redes sociais, durante o seu trajeto desde deputado no Congresso Nacional. Não houve a preocupação por parte dos governantes com a situação já precária da rede de atendimento, nem mesmo com a precária situação da maioria da população, dadas as condições socioeconômicas em que vivem. “Essa combinação de fatores sanitários, sociais e econômicos pré-epidemia, com a negligência das autoridades sanitárias durante a epidemia e da população diante do coronavírus, fez com que Manaus se tornasse a capital mundial da covid-19”, acrescentou Orellana.

A questão é: poderá acontecer em outros estados brasileiros?

O fato é que o governo federal, através do Ministério da Saúde, não demonstrou capacidade para gerenciar tão grande problema. Primeiro, porque nega a capacidade de letalidade do vírus, acha que “é uma gripezinha”. Segundo, negando a existência do vírus, nega também a ciência como instrumento que norteia os rumos da pandemia e as estratégias para o enfrentamento. E, em terceiro lugar, o “chefe da nação” tem demonstrado através de suas falas que não tem apreço algum pela vida e pelos direitos das pessoas.

Em sua reflexão, Chiquinho Oliveira relata alguns eventos que evidenciam o que pensa o presidente da República em relação ao trato com a manutenção da vida. Acho que expressa o pensamento de muita gente, até de quem votou nele e está arrependido. Relembrando aqui só alguns trechos desse desabafo, em que a MORTE está sempre presente em sua fala:

Sobre a ditadura militar: “O erro da ditadura foi torturar e não matar” (2008 e 2016); “Ele merecia isso: pau-de-arara. Funciona. Eu sou favorável à tortura. Tu sabes disso. E o povo é favorável a isso também” (1999); “Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar, infelizmente, se um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil, começando com o FHC, não deixar para fora não, matando! Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente.” (1999).

Sobre o Massacre do Carandiru: “Morreram poucos. A PM tinha que ter matado mil” (1992)

Sobre os gays: “Para mim é a morte. Digo mais: prefiro que morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo.” (2011)

Sobre a pandemia: “Alguns vão morrer? Vão, ué, lamento. É a vida. Você não pode parar uma fábrica de automóveis porque há mortes nas estradas todos os anos.” (27/03/20); “Eu não sou coveiro, tá certo?” (20/04/20); “Todos nós iremos morrer um dia.” 29 de março, 4.256 casos e 136 mortes; “E daí? Quer que eu faça o quê? Sou Messias, mas não faço milagres.” 28 de abril, 71.886 casos e 5.017 mortes.

Sobre a vacina: “Ninguém pode ser obrigado a tomar a vacina”;  “Vacina obrigatória só aqui no (cachorro) Faísca.” Agosto 2020.

Isso é só uma pequena mostra de como a palavra morte explicita o pensamento do presidente sobre como tratar o povo brasileiro. Não respeita os direitos, despreza as instituições, não acredita em políticas públicas. Nada desconhecido. E quando olhamos ao redor, boa parte da população – uma parte por ignorância e outra por convicção e crença – segue apoiando e não achando nada demais o que ele fala e pratica.

Estimula as aglomerações, debocha das orientações e medidas preventivas como o uso de máscara e o distanciamento social, incentiva o uso de substâncias e medicamentos desaconselháveis ao combate à doença. Tudo isso faz com o propósito de permanecer no cargo, cujo foco principal do que seria sua missão como presidente é a reeleição em 2022.

O comportamento do presidente é grave porque manifesta o desprezo pela vida e suas atitudes conduzem a população também a menosprezar os cuidados que deveriam ter para conter o vírus. Portanto, prejudica todos os esforços realizados pelos cientistas e pelo sistema de saúde para frear o vírus e reduzir a epidemia.

As cenas de desespero em Manaus evidenciando o abandono de familiares e profissionais da saúde à sua própria sorte, registraram uma página que deve ser virada na política brasileira.

Sempre bom repetir que, com a pandemia, a desigualdade existente no Brasil extravasou as suas causas e consequências. Impossível conviver com essa situação. Isso nós já sabemos há muitas décadas. “Há municípios em que as pessoas precisam percorrer, em média, 240 quilômetros para chegar ao hospital e ter acesso a um leito de UTI”, observou Nísia Trindade, presidente da FIOCRUZ, em palestra realizada para a comunidade universitária.

O país necessita de um presidente que trate a população com a seriedade e a responsabilidade que o cargo impõe, mesmo com tamanha desigualdade.

Queremos ser respeitados!

Queremos Viver!

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Nota: datas de pronunciamentos obtidas em jornais/web

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: redebrasilatual.com.br