A história se repetirá?

Por

Felipe Carvalho, Yuanqiong Hu, Leena Menghaney/Médicos Sem Fronteiras

Em 27.01.2021

Desmantelamos os argumentos das empresas farmacêuticas que insistem em rejeitar a isenção da propriedade intelectual de medicamentos para o combate à COVID-19

Thomas Cueni, diretor-geral da Federação Internacional de Associações e Fabricantes de Produtos Farmacêuticos (IFPMA) publicou recentemente um artigo de opinião no The New York Times em que criticava a proposta de “isenção do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TRIPS)” de medicamentos e ferramentas contra a COVID-19, apresentado pela África do Sul e Índia. A iniciativa, que já conta com o apoio de 100 países da Organização Mundial do Comércio (OMC), propõe a suspensão temporária de certas obrigações de propriedade intelectual de produtos farmacêuticos na OMC. Cueni rejeita a isenção e defende a manutenção dos atuais monopólios liderados pela indústria farmacêutica durante a pandemia. Neste artigo, os autores refutam vigorosamente a posição de Cueni e examinam como e por que seus argumentos são falhos.

Muitos dos pontos levantados por Cueni em seu artigo de opinião são muito familiares para nós, do movimento de acesso a medicamentos, e foram desmascarados em um documento informativo, publicado pela Campanha de Acesso de Médicos Sem Fronteiras (MSF). No entanto, dado o momento atual, em plena discussão em curso na OMC sobre o que a indústria tenta influenciar, vale a pena responder a alguns comentários que o representante desse setor faz menção em seu artigo. Essa atenção também representa uma oportunidade para examinarmos agora, à luz da pandemia de COVID-19, como as premissas de Cueni e dos aliados da IFPMA não têm fundamento.

Sobre a “ameaça” da renúncia à inovação médica

Embora Cueni reconheça a “preocupação legítima” com o acesso às patentes de COVID-19, ele afirma que “o esforço [de renúncia] colocaria em risco futuras inovações médicas, tornando-nos mais vulneráveis a outras doenças”, apesar de as evidências demonstrarem o oposto.

Esta pandemia já mostrou que é completamente possível acelerar a pesquisa e o desenvolvimento (P&D), impulsionados principalmente pelas necessidades de saúde pública e pelo financiamento público. Isso reflete o que inúmeras análises e estudos vêm mostrando há muito tempo e que contradizem as demandas da indústria farmacêutica por propriedade intelectual em nome da inovação.

Mais uma vez, as evidências dos últimos meses contradizem a afirmação de Cueni de que a propriedade intelectual desempenhou um papel indispensável na geração ou garantia de investimento em produtos de P&D de COVID-19, e que o sistema de patentes atual é robusto e necessário para a inovação farmacêutica. Pelo contrário, houve exemplos muito visíveis durante esta pandemia em que o exercício dos direitos de propriedade intelectual pelas empresas farmacêuticas “como se nada tivesse acontecido” impediu a disponibilidade e o acesso aos instrumentos médicos necessários. E nossa própria experiência como organização médico-humanitária mostra como o atual sistema de propriedade intelectual falha em fornecer inovação às pessoas que mais precisam.

Os lucros da indústria não são investidos em novas pesquisas

A indústria farmacêutica tem algumas das maiores margens de lucro do mundo, superando até mesmo as indústrias de petróleo e gás. Embora as corporações argumentem que os lucros obtidos por meio de monopólios apoiados por propriedade intelectual são necessários para recuperar o investimento em P&D e promover pesquisas futuras, estudos têm mostrado que as empresas farmacêuticas gastam seus lucros mais pesadamente em marketing, recompra de ações e distribuição de dividendos e pacotes salariais generosos aos executivos da empresa.

A indústria abusa do sistema de patentes para obter mais lucro

Para maximizar os lucros, as grandes empresas farmacêuticas há muito pressionam por padrões de propriedade intelectual mais flexíveis ao adquirir e prolongar monopólios. Muitas empresas farmacêuticas grandes estão vivendo dos lucros obtidos com a concessão de patentes de medicamentos com décadas de existência. Ao mesmo tempo, elas têm pressionado por uma aplicação mais estrita dos monopólios adquiridos, para que possam explorar e garantir mais direitos privados à custa de benefícios para a sociedade; no caso dos medicamentos, esse custo é contabilizado em vidas.

Ao permitir que as empresas gerem lucros por meio de monopólios e consequentes preços altos, o sistema de patentes atual cobre tratamentos para as poucas pessoas que têm os meios para arcar com eles, enquanto ignora milhões de pessoas em todo o mundo que se endividam para ter acesso a tratamentos protegidos por patentes ou que precisam esperar até que essas patentes expirem.

A indústria perturba o equilíbrio entre recompensar a inovação e beneficiar a sociedade

O modus operandi da indústria farmacêutica alterou o equilíbrio do sistema de patentes, que foi concebido para recompensar a inovação por um lado e garantir os benefícios dessa inovação para a sociedade, por outro. A Big Pharma tem apenas um interesse no sistema de patentes, que é usá-lo como estratégia de negócios para bloquear a concorrência e manter os preços altos. Isso levou a um aumento dramático nos custos de saúde em todo o mundo. Esta falha sistêmica foi claramente documentada por várias instituições, entre elas as Nações Unidas, embora continue a ser negada por grandes corporações. Se a IFPMA quiser falar sobre a “erosão” do sistema de patentes, este é o lugar para começar a pesquisa.

Sobre o papel do setor público na inovação médica

Cueni reconhece a realidade do apoio governamental à pesquisa, mas afirma que “os governos não têm dinheiro nem tolerância ao risco para assumir o papel dos negócios” e que “administrar laboratórios governamentais para fabricar medicamentos politizaria o desenvolvimento de medicamentos.” No entanto, ironicamente, nesta pandemia, são os governos que a indústria farmacêutica tem pressionado a assumir os riscos e as responsabilidades de desenvolver e fornecer ferramentas médicas contra a COVID-19. Obviamente, essa proteção contra responsabilidades se soma ao fato de a indústria farmacêutica receber um grande financiamento público e apoio regulatório para acelerar o processo de desenvolvimento. De maneira mais geral, embora o investimento público sempre tenha desempenhado um papel importante no financiamento de novas ferramentas e tecnologias médicas nos estágios iniciais da pesquisa, o que a pandemia nos ensinou é que os governos estão desempenhando um papel chave e facilitador também em outras fases do desenvolvimento, produção e entrega de ferramentas e tecnologias médicas.

Sobre a distribuição justa de novas ferramentas contra a COVID-19

Todos podemos concordar com Cueni que deve haver uma distribuição justa das vacinas e dos medicamentos contra a COVID-19. Mas, para Cueni, apontar o nacionalismo vacinal dos países ricos como a única causa do acesso injusto é simplesmente hipócrita e errado.

Se a Big Pharma realmente abraçou o princípio de garantir acesso equitativo e oportuno para todos, ela nunca deveria ter entrado em qualquer um dos acordos bilaterais de compra antecipada de vacinas e medicamentos contra a COVID-19 com países mais ricos. As farmacêuticas deveriam ter publicado seus acordos de licenciamento para estabelecer transparência e responsabilidade e tomado ações concretas para compartilhar abertamente todas as tecnologias e propriedade intelectual para facilitar a máxima diversidade de produção e fornecimento globalmente. Nada disso foi feito. Em vez disso, as corporações correram para fechar acordos com os países ricos e não conseguem atender a todas as demandas. O resultado é que milhões de pessoas ficaram no final da fila de vacinas e medicamentos contra a COVID-19.

Por que a isenção global de propriedade intelectual é importante

Se a IFPMA e seus aliados desejam sinceramente fazer as pazes e corrigir os erros do passado, precisamos de mais do que palavras sobre o apoio ao acesso equitativo. Infelizmente, a IFPMA não parece querer tomar nenhuma providência nesse sentido. A IFPMA rejeitou uma iniciativa que encorajava o compartilhamento voluntário de propriedade intelectual e tecnologias, e agora levanta objeções à proposta de suspensão dos direitos de patente, apesar do fato de que ambas as propostas são claramente elaboradas para abordar questões de acesso global.

Em essência, a luta reside entre o poder corporativo e a saúde pública, e somente uma solução política resolverá essa disputa. A proposta de renúncia ao TRIPS sobre COVID-19 oferece exatamente essa oportunidade para uma resolução legal e política.

Como qualquer outra política ou intervenção legal, a suspensão temporária da propriedade intelectual e dos monopólios isoladamente não resolverá todos os desafios de acesso. Com um escopo e cronograma especificamente definidos, a isenção visa resolver alguns dos desafios associados à propriedade intelectual em produtos e tecnologias médicas essenciais contra a COVID-19.

A proposta aborda a preocupação real de que as corporações estão silenciosamente acumulando patentes e propriedade intelectual que poderiam impor quando a atenção pública diminuir em relação à COVID-19. A renúncia aliviaria a carga burocrática dos ministérios da saúde para identificar a propriedade intelectual nos canais de tratamentos. Isso alivia as limitações das opções legais existentes de acordo com a legislação internacional que oferecem soluções fragmentadas apenas para países e produtos individuais. A renúncia também fornece uma orientação clara e consistente para escritórios de patentes e tribunais sobre como ver a concessão e execução de propriedade em meio a uma emergência de saúde pública e evita a possibilidade de disputas que poderiam atrasar a fabricação e o fornecimento locais.

Como os casos de COVID-19 continuam aumentando no mundo todo, nem os governos nem os cidadãos devem se deixar enganar por essa exibição pouco convincente de meia-humanidade da indústria farmacêutica. Este é simplesmente um novo capítulo na mesma crise de acesso, causada pelos mesmos fatores estruturais que vimos repetidamente.

A suspensão proposta na OMC é uma oportunidade para tomar medidas concretas para ajudar a prevenir a trágica repetição dos erros do passado quando se trata de acesso a tratamentos vitais. Ao mesmo tempo, o debate atual oferece uma oportunidade de olhar além do paradigma usual de inovação biomédica e trabalhar no sentido de construir um sistema de inovação médica mais justo, equitativo, transparente e responsável, que realmente atenda às necessidades de saúde pública.

Foto destaque: Peter Bauza/MSF