Impeachment: entre pedaladas fiscais e o leite condensado

Por

Enildo Luiz Gouveia*

Em 04.02.2021

A Constituição brasileira prevê o impedimento – impeachment – do comandante do Executivo em casos previstos na lei referentes a crimes e decisões que prejudiquem os interesses nacionais e de sua população. Todavia, podemos acrescentar, no caso do Brasil, o principal elemento que determina se haverá ou não tal impedimento; trata-se do Mercado – a mão invisível que tudo controla. Se porventura um governante deixa de representar os interesses do Mercado sofrerá inevitavelmente um impeachment, visto que os interesses das elites financeiras perpassam todas as esferas envolvidas. O Mercado tem uma bancada de deputados e senadores fiel, controla parte do judiciário, visto que os que ascendem aos mais altos cargos da magistratura são oriundos da própria elite, numa espécie de herança genética. Acrescenta-se, ainda, a grande mídia corporativa e sua capacidade de convencer e manipular a opinião pública. Qualquer um que desagrade estes, mesmo que não tenha cometido crime, inevitavelmente cairá.

Na história recente do país ocorreu o impeachment da ex-presidente Dilma. O argumento das “pedaladas fiscais” foi amplamente utilizado como causa para abertura do processo. Todavia, como ficou comprovado, as tais pedaladas não só não existiram como não seriam motivos suficientes para a ocorrência do impedimento. Sendo assim, o processo movido contra Dilma foi, do ponto de vista jurídico, um impeachment, e do ponto de vista do mérito, um golpe escandaloso, mesmo que os movimentos sociais e partidos de esquerda tenham lutado até o último momento.

Na outra face da história brasileira, o momento atual, vê-se um presidente que faz ataques constantes ao judiciário e ao legislativo; interfere em investigações e na polícia; lesa o patrimônio nacional com venda e concessões de ativos estratégicos; ignora uma pandemia letal e seus milhares de mortos; provoca aglomerações, desrespeita os protocolos sanitários de segurança; tem envolvimento direto com milicianos (o caso Queiroz é emblemático. Ele foi encontrado escondido na casa de um dos advogados da família Bolsonaro, tal é sua relação de proximidade); desrespeita a mídia que discretamente expõe os erros do governo; não consegue frear a inflação que consome o poder aquisitivo dos mais pobres e nem mesmo, consegue gerar emprego; e, no caso mais recente, autoriza o governo a gastar milhões com mimos para as forças armadas (um dos seus pilares de sustentação): chicletes, leite condensado e guloseimas, enquanto as pessoas sofrem pela falta de oxigênio e vacinas.

Haveríamos de nos perguntar por que então não há o impedimento de Bolsonaro? Simples, mas não tão simples assim! Ele agrada o Mercado. Uma das pesquisas de opinião apontou que o mesmo possui a aprovação de mais de 60% no meio empresarial. Este setor o considera um “mal necessário”, visto que o mesmo faz a política do entreguismo neoliberal.

Assim, infelizmente no Brasil o impeachment não é um artifício para conter os arrotos autoritários nem crimes do Executivo. Tornou-se mais uma arma política a serviço do Mercado e de seus parceiros. Existem hoje na congresso, cerca de 60 pedidos de impeachment de Bolsonaro oriundos dos mais diversos segmentos da sociedade. Será que nenhum desses pedidos tem mérito? Eis a diferença entre as pedaladas fiscais e o leite condensado.

*Enildo Luiz Gouveia é professor do IFPE e membro da Academia Cabense de Letras (ACL). Escreve às quintas-feiras.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: br.financas.yahoo.com