A mulata e a caveira
Jénerson Alves*
Em 12.02.2021
Sexta-feira. Fim de tarde.
Em um raro momento de folga, sentei-me em um dos bancos da praça em frente à Igreja de São Francisco. Nas mãos, uma edição desbotada da ‘Cartilha do Cantador’, escrita pelo professor Aleixo Leite Filho. A obra me dá uma nostalgia dos tempos de Fafica…
Ter cursado Letras naquela faculdade foi um dos melhores momentos da minha vida. Não acredito que a Fafica fechou as portas, abrindo uma ferida em meu coração… Tudo culpa de falhas administrativas, impactadas ainda mais por essa tal de pandemia…
De repente, minhas digressões foram interrompidas. Meus olhos descansaram ao enxergar a Beleza em forma de gente. Uma ‘morena cor de canela’, como na música de Jacinto Silva, desfilando com seu charme deslumbrante de mulher meio matuta; daquelas que têm um olhar de santa, mas faz a gente pecar toda vez que olha… Os cabelos dela bailavam ao ritmo do vento. Ela estava com um vestido florido, à altura do joelho, nem muito justo nem muito apertado. Não mostrava muito, mas não conseguia esconder tanta formosura. Enquanto eu estou babando, e não é que ela passou do meu lado?
E quando ela passou, meio que sem saber o que faz (ou sabendo, quem sabe?), ela falou comigo. Não sei se foi só pra puxar conversa, ou se foi uma dúvida real. Ela disse:
– Acho tão bonita esta estátua! – apontando pra estátua de S. Francisco de Assis. – Só não sei porque é que tem esta caveira horrível aqui embaixo! Ôxe!
Eu dei um sorrisinho… Respirei fundo, criei coragem e falei:
– Sou evangélico, mas sei. Senta aqui, que eu te explico.
E não é que ela sentou, mesmo? Ela tinha um cheiro de perfume da Avon, sem muita sofisticação, mas aconchegante…
Tentando, ao máximo, jogar fora meu tom professoral, falei:
– Esta caveira vem de uma tradição cristã, expressa pela frase latina ‘memento mori’, que quer dizer ‘lembre-se da morte’. Conta-se que quando Francisco de Assis escreveu uma bênção para Leão, desenhou a cruz em forma de tau sobre o esboço de uma caveira. Além de Francisco de Assis, Jerônimo e Maria Madalena, por exemplo, são muitas vezes retratados junto a crânios. A prática de lembrar da morte faz com que a pessoa se lembre que esta vida na terra é passageira. Todos estamos aqui para buscar o céu. Isso nos ajuda também a guiar nossa vida nas coisas importantes, sem se preocupar com bobagem, nem com intrigas, nem com preocupações sem motivo.
Ela ficou me olhando boquiaberta. “Ela está impressionada com o tanto do meu conhecimento” supus, jactancioso. Seus lábios grossos me faziam pensar em convidá-la ao parque que fica a algumas quadras… mas lembrei que está fechado, por causa do ‘bichinho-da-maçã’… Aos poucos, a curvatura de sua boca foi se modificando. Ela deu um sorrisinho. E eu vi a eternidade naquele sorriso!
Foi quando notei que ela estava sorrindo era para outro cara! Ela se levantou. Abraçou-o. Deu um selinho. Gentilmente, olhou para mim novamente e falou:
– Obrigada, moço. Eu nunca tinha ouvido falar sobre esta história.
Enquanto eu acompanhava seus passos, vendo o cara abraçando-a pela cintura, ainda pude perceber que ele perguntou:
– Quem é esse doido?
E a resposta:
– Sei lá, amor. Acho que ele é meio doidinho…
Jénerson Alves é jornalista e membro da Academia Caruaruense de Literatura de Cordel. Escreve às sextas-feiras.
Foto destaque: Assessoria/Divulgação