As eleições de 2022 à sombra do Capitólio

Por

Luiz Edson Fachin*

Em 12.02.2021

Encontra-se a democracia numa sala de emergência. Assim como nos hospitais, a racionalidade se preserva se forem seguidas as regras, as evidências e as ações pautadas na devida justificação.

Recentemente, na condenável invasão do Capitólio norte-americano, o que ocorreu foi nitidamente o oposto: 1) a não aceitação do resultado eleitoral em eleição normal e legítima; 2) a incitação à usurpação de outro poder; 3) violência e mortes. Relevante observar o evento reprovável pela perspectiva inversa, daquilo que poderia ter acontecido e não ocorreu: não prosperou a violação da ordem jurídica democrática com um golpe de Estado, e isso por três razões fundamentais: as Forças Armadas e de segurança se mantiveram em suas funções; a reação protetiva da democracia das lideranças políticas e da sociedade foi enfática; e a comunidade internacional repudiou a tentativa de golpe.

O arbítrio não é um léxico fora de moda. O Brasil está sob a ameaça de repetir a nociva experiência e fazê-lo de modo agravado. Cumpre vigiar e proteger a democracia brasileira. Impende defender o sistema eleitoral. As eleições em 2022 serão o mais duro teste para a democracia após 1988.

Sabe-se que toda eleição, por si só, é um desafio, pois se trata da maior mobilização da sociedade em tempos de paz. Organizar o processo eleitoral e garantir eleições livres e competitivas exige um enorme esforço logístico. Mas, para isso, a Justiça Eleitoral está sempre pronta. A preparação de toda eleição tem início assim que a anterior se encerra e as sucessões na presidência do TSE não exercem qualquer impacto negativo na continuidade desses trabalhos, pois, além de contar com um corpo técnico permanente muito qualificado, sempre existiu um diálogo entre os presidentes para que a continuidade administrativa seja assegurada. Em 2022 não será diferente.

Obviamente que toda eleição guarda suas singularidades, na medida em que é muito sensível às disputas políticas. A polarização que guiou as eleições de 2018 ainda se faz presente e onde ela germina dificilmente se colhe entendimento, respeito pelo opositor e tolerância. Nesse ambiente, os principais desafios serão as fake news e o movimento de criação, às vezes dissimulado, às vezes indisfarçável, de um ambiente de inconformismo antecipado com o resultado das urnas, em uma espécie de disputa que só admite um vencedor. Isso é muito grave, pois atinge um dos pilares da disputa sadia pelo poder que é a incerteza dos resultados. Um concordância prática exigida nas democracias é a aceitação do resultado derivado das escolhas populares.

Em 2022 é possível que tenha sido controlada a pandemia, sendo para tanto imprescindível a universalização gratuita da vacina, e as eleições serão realizadas em um clima de normalidade. De qualquer modo, sob a liderança do ministro Luis Roberto Barroso, a Justiça Eleitoral deu provas de rápida adaptação às adversidades e soube, por meio de um diálogo republicano com o Poder Legislativo e por meio de parcerias cidadãs com a sociedade civil, congregar esforços para tornar possível a transição de cargos políticos de forma democrática. Essa experiência já integra nosso acervo de conhecimento e dá provas de que, mesmo em um ambiente de disputa pelo poder, existem consensos mínimos que precisam ser preservados. A sucessão democrática e o respeito à exata extensão dos mandatos foram protegidos.

A exigência da imparcialidade, simbolizada pela veste da toga, também impõe à magistratura eleitoral zelar pelo sistema eleitoral contra as ilicitudes de mentes autoritárias que propagam ruínas e disseminam confusões propositais. Até mesmo nas refinadas esferas do pensamento há quem embanane a herança de Jânio Quadros com o legado de Rui Barbosa, misturando, na curta sombra do anoitecer, gatos e lebres.

Ao sinal do que aconteceu no Capitólio, o Brasil tem uma tarefa a cumprir. Desse encargo o futuro da democracia brasileira nos dirá. E será em breve. Um presidente da República não pode, nem deve, instigar a invasão de outro poder. A República exige responsabilidade de seus agentes. Não pode ser somente palco de coalizões de interesses e de oportunismo, nem de barganhas políticas de ocasião.

É grave o quadro. Atentados contra a liberdade de imprensa, apologia à ditadura, à tortura e à repressão política, retorno à militarização do governo civil, intimidações inadmissíveis a outros poderes, depreciação do valor do voto, xenofobia, misoginia, incentivo às armas e à violência, incitação à animosidade entre as Forças Armadas e instituições civis, o negacionismo, o silêncio cúmplice das elites e a naturalização da corrupção são alguns dos sintomas que compõem uma ameaça corrente.

A emergência democrática necessita do oxigênio que representa o respeito pelo processo e pelo resultado das eleições. Diante da situação urgente e complexa para o Estado de Direito, o paciente corre risco.

O câncer do autoritarismo mata. Sem democracia não há liberdade, nem garantias individuais ou racionalidade coletiva, muito menos segurança jurídica. É da democracia que deve emergir o vírus contra o arbítrio, e não do autoritarismo com verniz de populismo político.

Luiz Edson Fachin é ministro do Supremo Tribunal Federal e vice-presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

Artigo publicado originalmente no Portal Consultor Jurídico.

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