A Revolução
Dorgival Soares da Silva*
EM 13.06.2020
Aprendemos que, num dia como outro qualquer, 14 de julho de 1789, muitos acordaram mal-humorados, saíram às ruas e, tomaram a Bastilha.
Não foi só isso, sabemos. Esse pode ter sido o gatilho, uma demonstração do ‘juntos, podemos’.
Toda uma situação fora criada, calmamente, ao longo de séculos.
No final do século XVIII, a França colecionava crises: uma econômica, entre as instituições, nos valores e, religiosa.
Felizmente, o Brasil não é a França; nosso povo é ordeiro. Os franceses, estranhamente, são pouco agradecidos, esquecem que moram na ‘França’.
Vamos, em linhas rápidas falar sobre elas.
Crise econômica: Em 1780, a França era a maior potência europeia, com 25 milhões de pessoas. A indústria expandira-se e se diversificava. Mas, algumas indústrias não eram competitivas, principalmente a têxtil, com os ingleses empregando sua tecnologia 1.0, os teares a vapor.
E o governo, acontece, estava falido. Meteu-se, imperialísticamente, a apoiar os revoltosos americanos. Os ingleses perderiam uma grande colônia e, a hegemonia estava em disputa.
Os gastos públicos excediam em um terço as rendas do governo (hoje, chama-se déficit).
Esse um terço que excedia a arrecadação era para pagar (adivinhem) os juros sobre os empréstimos contraídos pelo governo (dívida pública).
Naquela época – isso acabou – havia uma prática estranha de sonegação e corrupção. Principais sonegadores e corruptos: nobres e burgueses ricos. Os pobres pagavam tudo direitinho.
Ainda, a safra 1787-88 de trigo foi péssima. O preço do pão (e do brioche) foi quadruplicado. Por outro lado, os produtores de uva tiveram sucessivas supersafras, que fizeram despencar o preço do vinho.
Pão caro, vinho barato.
Na época, não havia ‘favelados’, mas os arredores das grandes cidades eram tomados por sans-culottes (‘sem-cuecas’) e, o número de desempregados chegava a 200 mil! A bandidagem estourou.
Carência, desigualdade, falta de segurança …
Desordens e tumultos apareciam com frequência.
Enquanto isso, agitadores pregavam uma ‘nova era de liberdade e de bonança’.
Crise Institucional: Havia uma figura medieval chamada Estados Gerais, que há mais de 150 anos estava sem uso. Na crise, Luís XVI decidiu ressuscitá-la. Erro de avaliação.
O que eram esses ‘Estados Gerais’? Na Idade Média, sempre que os reis queriam instituir um novo imposto ou introduzir uma inovação administrativa, convocava-os. São três estamentos, óbvios: em primeiro lugar, o clero; seguido pela nobreza e, em terceiro lugar, os outros. Esses ‘outros’ não estavam contentes. Além da crise econômica, não queriam mais tolerar as imunidades tributárias da Igreja e os privilégios da nobreza.
Crise dos valores: O século XVIII ficou conhecido como o ‘século das luzes’. A razão desalojava os dogmas religiosos. A fé voltava-se para a ciência. Nasciam a cirurgia, a geologia, a química, a metalurgia, a biologia … e o mito do ‘progresso perpétuo’. A humanidade sempre evoluiria para melhor.
A razão substituindo a autoridade.
Interessante que os criadores desses mitos não foram os cientistas – que humildemente se subordinam aos fatos -, foram os ‘divulgadores’ da ciência, os jornalistas de ciência da época, que se deslumbraram com o poder ‘sem limites’ da razão humana.
“As revoluções se fazem nos espíritos antes de passarem para os fatos”, dizia Albert Mathiez.
Jean-Jacques Rousseau também ‘envenenara’ o ambiente, com suas críticas ao papel do social na formação humana. Ele tinha um ideal: a sociedade em ‘estado puro’. Ele se opunha ao calvinismo, que insistia na corrupção da natureza humana pelo ‘pecado original’. A sociedade, sim, precisaria ser reestruturada pela base, para se criar um ‘novo homem’. Essa discussão que nunca acaba.
Essa não era a moral que a Igreja pregava. Era algo da moral pagã, como divulgada por Cícero, Marco Aurélio, Aristóteles e outros.
Ao desconsiderar o pecado e a necessidade da autoridade divina como guias da nossa razão, abria-se caminho para a relativização da moral. Ainda em curso.
Crise religiosa: Naquela época, quase um porcento da população era de religiosos. A igreja era proprietária de cerca de um sexto do território francês, tanto em terras como em edifícios públicos. E, tinha imunidade fiscal e privilégio de foro. Como se diz na minha terra: ‘um pouco demais’.
Bom, paremos por aqui.
Dá para entender que o caldeirão estava fervendo.
Motivações havia. Restava a mobilização. E, eles estavam agindo.
*Dorgival Soares da Silva é Administrador de Empresas. Pernambucano de Vitória de Santo Antão, está radicado em São Paulo desde 1992.
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Muito bom o texto. Claro , porem , carece de uma reflexão profunda do leitor. Reflete um cenário semelhante ao que vivemos. ” Ficamos com o texto de Jean-Jacques Rousseau também ‘envenenara’ o ambiente, com suas críticas ao papel do social na formação humana. Ele tinha um ideal: a sociedade em ‘estado puro’. Ele se opunha ao calvinismo, que insistia na corrupção da natureza humana pelo ‘pecado original’. A sociedade, sim, precisaria ser reestruturada pela base, para se criar um ‘novo homem’. Essa discussão que nunca acaba.” Gosto muito de J.J Rousseau. Ideologias políticas e religiosidade não se misturam .Hoje é o “falso cristanismo” se intrometendo em assuntos políticos. Com ressalvas:. Não todo o pecado original. Talvez parte da raiz do pecado que nunca foi estirpada da humanidada na sua totalidade e nem tão pouco o envenenamento de Rousseau querendo sobrepor o cristianismo de Calvino.
Obrigado pelo comentário, Obede.
A Igreja também tem seu ‘pecado original’: sua união carnal com o poder.
O poder temporal, de mãos dadas com o poder celestial, esmagou por séculos a liberdade humana. Do nascer ao morrer e, nesse intervalo, o sobreviver, tudo dependia dos Céus ou dos poderosos.
O Século das Luzes procurou resgatar o homem e atribuir-lhe pelo menos um papel histórico.
Esse esforço, com seus excessos, nos trouxe ao Estado laico.
Hoje, a religião quer retomar seu poder ao lado do trono terreno.