O cordel da pandemia

Por

Arnaud Mattoso*

Em 17.02.2021

Apenas três vezes escrevi o gênero literário do Cordel: a primeira vez sobre o Sertão, para a ONG ASA (Articulação do Semiárido Brasileiro); a segunda sobre Luiz Gonzaga, para um trabalho de faculdade; e a terceira vez no ano passado, sobre a pandemia da Covid-19, para um prêmio literário da UNIPAMPA, a Universidade Federal do Pampa, no Rio Grande do Sul. Em cada uma dessas vezes houve a motivação que me fez buscar rima e métrica necessárias para compor esse tipo de manifestação tradicional da cultura popular brasileira, em especial do interior nordestino.

A Literatura de Cordel tem características específicas e o ritmo das palavras é a mais interessante delas. Por isso, os bons cordelistas são grandes oradores que leem os versos no ritmo que as letras foram escritas. Outra característica é compor em cima de fatos atuais, o que a faz análoga ao Jornalismo em sua função social de informar à sociedade, respeitando todas as vênias técnicas possíveis dessa comparação. Por esse mesmo motivo do factual, o Cordel se afasta dos cânones literários ao incorporar a linguagem e os temas populares das ruas, aquilo que está na “boca do povo”. O que não deixa de ser um tipo de preconceito que renderia valorosos debates acadêmicos.

Quando resolvi participar do concurso literário da Unipampa, fui motivado pela temática sugerida: “poemas que reflitam a PANDEMIA, considerando implicações e reflexões sobre o período da Covid-19 no Brasil”. O concurso falava em poemas e o Cordel, feito em versos e rimas, é similar à poesia. Estou longe de ser um regionalista ortodoxo. Como pernambucano da capital, não tenho grande aproximação com o Cordel, nem sou leitor contumaz do gênero. A minha impressão é de que, no Nordeste, o “cabra” já nasce lendo “a rima rica, abaixo e acima, acima e arriba”. É como os acordes do frevo que a criança no berço chora em doze compassos ligeiros com a chupeta se fazendo de sombrinha. É a cultura popular que se nasce sabendo, geracional e genética; aprendida ao longo da vida, entranhada na memória oculta do cérebro.

O fato de ter ficado em Segundo Lugar no Prêmio Unipampa, em nível nacional, com o “Cordel da Pandemia” me encheu de orgulho. Não apenas pelo reconhecimento do esforço empreendido, mas por ter sido o único nordestino entre os três primeiros lugares; e, por ter sido com a Literatura de Cordel, muito mais do que seria se fosse com a poesia tradicional. Creio que houve poucas manifestações literárias nesse gênero. O primeiro lugar foi para Rio Grande do Sul e o terceiro para o Rio de Janeiro. Segue abaixo para o leitor do blog Falou e Disse, o “Cordel da Pandemia”.

CORDEL DA PANDEMIA

2º Lugar Prêmio UniPampa 2020

Hoje acordei e era ontem
E o ontem era hoje
Já nem sei que dia era
Nessa tarde de agonia
Como cão vigia entrada
Eu vigio todo o dia

Tá difícil de viver
Dentro de casa sem saber
Se amanhã tem outro dia
Nessa tal de Pandemia
O amanhã pode crer
Pode nunca acontecer

O doutor diz uma coisa
O presidente fala outra
Diz que é uma gripezinha
Que só mata mulherzinha
Atleta e homem forte
Sobrevive sem morrer

Nessa tal de pandemia
Eu só digo deus me acuda
Eu não sou filho de judas
Nem amigo do tinhoso
Esse cabra da mulesta
Que se dá ao que não presta

Ai de mim senhor jesus
Sou seu filho comportado
Uso máscara e álcool em gel
Lavo as mãos e as bochechas
Nessa tal de pandemia
Lavo até favo de mel

Sigo as ordens do doutor
Que é melhor de confiar
Na ciência que alerta
Ao presidente que a destrata
Doença é coisa séria
É a Pandemia da Miséria

Meus irmãos desempregados
Meus amigos sem trabalho
Minha mulher dentro de casa
A gritar seu preguiçoso
Mas o que posso fazer
Se estou é ocioso

Busco vaga em jornal
Em anúncio de internet
Acredito em qualquer coisa
Só para ter a esperança
De sair dessa miséria
Depois da tal de pandemia

Agora dá licença o doutor
Que eu vou me retirar
Tenho mais o que fazer
Nessa tal de pandemia
Ficar parado é morrer
De tédio e agonia.

*Arnaud Mattoso é jornalista