O cego disfarçado e a cegueira conveniente 

Por
Ayrton Maciel*
Em 21.02.2021
Respeitado constitucionalista brasileiro, o conservador católico e jurista Ives Gandra Martins condenou a prisão em flagrante, por ofensas e ameaças ao STF, do deputado Daniel Silveira (PSL/RJ), rejeição tornada pública antes da ratificação da prisão pelo plenário da Câmara Federal. Na interpretação de Ives Gandra, deputados e senadores são invioláveis judicialmente, seja por opinião, fala ou voto. Podem ofender, ameaçar e jurar qualquer blasfêmia que não serão presos. Assim sendo, o ministro do Supremo, Alexandre de Moraes, teria agido fora da Constituição. Quer dizer, segundo Ives, parlamentares não são cidadãos comuns que, se repetirem seus representantes, vão à prisão. Parlamentares são divindades do Olimpo.
Caso seguida essa interpretação, algumas situações surreais, em tese – a título de liberdade de expressão e inviolabilidade do mandato parlamentar -, podem ser colocadas para que Ives Gandra esclareça se “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa ou uma coisa e outra coisa são a mesma coisa”. Vejamos: se um parlamentar defender o holocausto judeu, elogiar Adolf Hitler e fizer apologia do nazismo, estará abrigado pela Constituição como liberdade de expressão e inviolabilidade de pensamento? Se um supremacista branco pregar “superioridade racional”, defender a “escravidão”, propuser “segregação racial” ou sugerir “limpeza étnica”, estará no pleno direito de livre expressão do cargo para o qual foi eleito?
Se um deputado ou senador usar a tribuna ou redes sociais para propagar “preconceitos social e de gênero”, minimizar o feminicídio e a homofobia e incitar a “violência contra minorias étnicas e ocupantes sem-terra”, estará acobertado pela Constituição? Não poderá ser freado pelo Judiciário? Se sim, Ives, estamos sob a guarda de uma Constituição anticidadã. Caso não, como distinguir e separar o que pode e o que não pode em termos de violência, racismo, calúnia e ameaça, todos substantivos e crimes? A pequena violência, pode-se praticar? A grande violência, depende de quem parte e a quem é dirigida? O fato de ser um conservador e católico fanático não garante a Ives a vaga no céu. Muito mais, por pecador, o torna cego. Só a parcialidade política o isenta da interpretação verdadeira.
É impressionante como negacionistas e terraplanistas – aliados, integrantes e simpatizantes do governo Jair Bolsonaro – recorrem aos mais estapafúrdios argumentos, num malabarismo de raciocínio que visa a respaldar o fanatismo e a cegueira contaminadores de ódio no país. Absurdos verbais não são monopólio de governistas, mas no governo Bolsonaro eles têm sido a munição majoritária de aloprados de direita. Em contraponto, o jurista e professor da Universidade de São Paulo (USP), Floriano de Azevedo, vai ao cerne da questão: “A liberdade de expressão não é passe livre para a prática de crimes. A imunidade parlamentar não autoriza delinquir”.
O deputado Daniel Silveira tinha consciência dos crimes – ameaça, ofensa moral e apologia à violência militar -, tanto que buscou se desculpar na audiência de custódia e não convenceu. É um marombista de ocasião. Para azar do deputado, o farsante tem as pernas mais curtas que a farsa. Logo se entrega. A burrice comove, a falsidade não convence. Daniel não é o único que gostaria de implodir a democracia. Odeia direitos humanos, diversidade, opinião contrária, distribuição de renda, combate à pobreza, convivência de ricos e pobres e brancos e negros – sem ser numa relação de patrão e empregado – em aviões, shoppings e salões, porque entende esses contextos como ‘papo de comunistas’.
Na Comissão de Ética da Câmara, a considerar o histórico da Casa, aumentam as chances de clemência ao deputado, numa articulação do espírito de corpo com o temor do “efeito Orloff: eu sou você amanhã”. A reação do ministro Alexandre Moraes às agressões e ameaças ao STF e à Constituição e o respaldo unânime do Supremo à prisão de Daniel Silveira criaram uma jurisprudência para episódios semelhantes, o que é um alerta aos parlamentares. Porém, ao mesmo tempo, é um apelo à racionalidade, ao decoro e à civilidade: a política não pode ser um jogo selvagem, o palco para a cólera humana, o passe livre para o crime e a imunidade contra a Justiça.
*Ayrton Maciel é jornalista. Trabalhou no Dario de Pernambuco, Jornal do Commercio e nas rádios Jornal, Olinda e Tamandaré. Ganhador do Prêmio Esso Regional Nordeste de 1991.
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