Vozes que não calam: a luta do movimento indígena ontem e hoje
Isabela Alves/Observatório 3º Setor
Em 23.02.2021
Nesta reportagem especial, entrevistamos três indígenas brasileiros de destaque: Ailton Krenak, que representou o movimento indígena na Assembleia Nacional Constituinte; Alessandra Korap, reconhecida com o Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos; e Vanda Ortega, técnica em enfermagem do Amazonas e primeira pessoa a ser vacinada contra a Covid-19 no estado
Em 1500, época em que foi registrada a chegada dos portugueses no Brasil, já havia 3 milhões de habitantes nativos no Brasil. Dois milhões moravam no litoral, enquanto 1 milhão vivia no interior do país.
Por conta dos processos violentos dos europeus em busca da conquista de terras, em 1650, o número já havia caído para 700 mil indígenas e, em 1957, chegou a 70 mil, sendo este o número mais baixo registrado.
A partir desse momento, a população indígena voltou a crescer: de acordo com o último Censo, lançado em 2010, existem 896,9 mil indígenas, de 305 etnias e que falam 274 idiomas.
O Brasil possui 505 terras indígenas, que representam 12,5% do território brasileiro. E, apesar dos povos indígenas representarem apenas 5% da população mundial, eles protegem 80% de toda a biodiversidade.
Passados mais de 500 anos após a primeira invasão de suas terras no território que hoje chamamos de Brasil, os povos originários ainda persistem na luta por respeito a sua cultura, demarcação de terras e o direito de viver uma vida plena.
O início de uma revolução
Nascido na região do Médio Rio Doce, no estado de Minas Gerais, ele cresceu em uma época em que o seu povo estava declarado como extinto. Os indígenas de seu povo foram retirados de suas terras por fazendeiros que invadiram o território.
Os sobreviventes foram viver em outras áreas do Brasil, incluindo os Krenak, que se mudaram para o Paraná quando ele tinha 17 anos. Apesar de carregar uma dor por ter de deixar seu lar, ele sempre teve em mente que voltaria mais forte para conquistar o seu lugar de direito.
“A minha aldeia estava praticamente extinta. Desde sempre minha família estava lutando pela sobrevivência. O contrário de fugir seria morrer, então ficamos vivos para poder voltar ao nosso território”, conta Krenak.
Nos anos 80, ele saiu do exílio, fincou os pés no chão e decidiu que iria se dedicar ao movimento indígena lutando pelo direito a território, cultura e saúde. Naquele momento, mal imaginava ele que, a partir desta decisão, estaria transformando a causa na sua razão de viver.
Em 1985, criou a Pastoral Indigenista e passou a atuar contra a Ditadura Militar. No ano seguinte, ele representou o movimento indígena ao participar da Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição Brasileira de 1988.
Com o rosto pintado com a tinta preta do fruto jenipapo e com os olhos marejados, ele ergueu a voz para protagonizar um dos momentos mais importantes e emocionantes do evento:
“O povo indígena tem um jeito de pensar, tem um jeito de viver, e hoje nós somos alvo de uma agressão que pretende atingir a essência da nossa fé e confiança de que ainda existe dignidade, de que ainda é possível construir uma sociedade que sabe respeitar os mais fracos (…). Um povo que habita casas cobertas de palha, que dorme em esteiras no chão, não deve ser identificado de jeito nenhum como um povo que é inimigo dos interesses do Brasil, inimigo da nação e que coloca em risco qualquer desenvolvimento”.
Nesse dia, foi aprovado o capítulo dedicado aos povos indígenas na Constituição e o seu discurso contribuiu para um momento decisivo na história do país.
Os direitos garantidos estão expressos no Título VIII, Da Ordem Social, Capítulo VIII, Dos Índios, com preceitos que asseguram o respeito à organização social, aos costumes, às línguas, crenças e tradições.
“O ‘centrão’ não queria que fosse aprovado, mas conseguimos esse marco. A Constituição se tornou um símbolo da emancipação dos povos indígenas e até hoje os mais jovens me agradecem pela minha fala. Se a Constituição é respeitada atualmente, aí é outra questão”, afirma.
Em 1988, participou da fundação da União dos Povos Indígenas, e no ano seguinte, participou da criação da Aliança dos Povos da Floresta, um movimento que luta por reservas naturais na Amazônia.
Entre 2003 e 2010, ele se tornou assessor especial do Governo de Minas Gerais em prol de políticas públicas para os povos indígenas.
Krenak também se dedicou ao mundo acadêmico. Em 2016, ele recebeu o título de Professor Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e, em 2020, recebeu o prêmio de intelectual do ano pela sua contribuição em prol do desenvolvimento da democracia brasileira.
Krenak também realiza diversas palestras e duas delas foram adaptadas nos livros ‘Ideias para Adiar o Fim do Mundo‘ e ‘A Vida Não É Útil‘, ambos publicados pela Companhia das Letras. Apesar de toda bagagem, ele não se enxerga como um intelectual.
Agora, aos 67 anos, ele mora com sua família e acredita que é tempo de descansar para cuidar deles. “Eu ajudei a criar o movimento indígena e agora ele deve seguir os seus passos com essa próxima geração”.
Ele conclui citando uma frase do poeta cubano José Martír: “Há uma coisa que um homem deve fazer na sua vida: plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro”.
Ele afirma que, mesmo que uma pessoa não deixe um legado futuro para as próximas gerações, no sentido de construir uma família ou escrever um livro, será o suficiente se ela plantar uma árvore e cuidar do planeta Terra.
As mulheres ocupam seu lugar de destaque no movimento
Alessandra Korap nasceu em 1985, na aldeia Munduruku, no Pará, em uma época na qual as mulheres não tinham o costume de participar das reuniões com os líderes da aldeia e nem se interessavam por política.
“Minha mãe dizia ‘não fala com o cacique. Mulher tem que cuidar dos filhos e da roça’, mas eu não me via nesse papel”, conta.
Em 2015, com o crescimento da cidade de Itaituba, no Pará, o aumento do desmatamento e com os loteamentos das usinas hidrelétricas, Alessandra passou a notar que o mundo ao seu redor estava mudando.
Coisas simples, como pescar no rio, tornaram-se atividades de risco e a vida da aldeia inteira havia sido impactada. Ela queria entender o que estava acontecendo.
Apesar da resistência inicial por ela ser mulher, os caciques passaram a observar como ela trabalhava pelo bem da comunidade. “Estava com medo de perder o rio. Eu queria mostrar que poderia expor minhas ideias sem ultrapassar a autoridade dos caciques”, diz.
Ela passou a realizar reuniões com as mulheres da aldeia para que todas pudessem se conhecer e também educar os jovens. Em pouco tempo, ela se tornou uma das chefes das reuniões na aldeia e passou a atuar na luta pela demarcação de terras.
Ela se tornou a primeira mulher coordenadora da Associação Indígena Pariri e isso a inspirou a querer ir ainda mais longe.
Não demorou para que surgisse o desejo de estudar Direito para aprender mais sobre as “leis dos brancos”, como uma maneira de se preparar melhor para futuras lutas e também passar o conhecimento adiante.
Em 2019, ela foi aprovada em 2º lugar na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Para estudar, ela deixou a aldeia e se mudou para a cidade grande, mas logo sentiu uma grande mudança no seu estilo de vida.
Enquanto na aldeia estava livre para andar na natureza e comer os alimentos que a natureza proporciona, na cidade a vida era entre muros e era preciso pagar preços altos por tudo o que consumia.
Além disso, Alessandra não conseguia acompanhar a metodologia de aprendizagem da universidade.
“O homem branco estuda desde criança, enquanto o indígena tem o conhecimento fora. Os homens brancos sabem de muita coisa, mas ao mesmo tempo não sabem de nada. Eles pensam que só eles trazem o progresso, enquanto negam a nossa existência. O homem branco só pensa em si mesmo, enquanto acaba com o meio ambiente. Nós pensamos na mãe terra, nos nossos filhos e no futuro do planeta”, diz Korap.
No mesmo ano em que começou os estudos universitários, ela foi a uma audiência na Câmara dos Deputados, em Brasília, durante o 15º Acampamento Terra Livre (ATL).
Um vídeo viralizou nas redes sociais após ela denunciar as invasões de madeireiros e garimpeiros, e afirmar que a atual ministra Damares Alves, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, nunca representou os interesses do seu povo.
“Os evangélicos estão entrando na nossa terra para dividir o nosso povo, tirando a nossa cultura e agora querem tirar a nossa alma (…). Respeita os nossos antepassados. Faz 519 anos que estamos resistindo e mesmo que tire a nossa raiz, ela está lá infiltrada e está crescendo. Ela vai criar frutos e as flores vão se espalhar”.
Dez dias após o seu discurso em Brasília, sua casa foi invadida por ladrões que levaram seus documentos pessoais, telefone, pendrive e até mesmo o disco rígido da câmera. Alessandra conseguiu realizar a denúncia apenas dois dias depois do ocorrido com a ajuda de um advogado.
Muitos defensores de direitos humanos acreditam que o ato foi uma maneira de intimidar a ativista. O caso repercutiu internacionalmente, sendo que deputados federais da Alemanha exigiram que o governo brasileiro providenciasse a sua proteção.
Em 2020, com o início da pandemia, ela sentiu ainda mais dificuldades para acompanhar as aulas na universidade e acabou trancando o curso. Era o momento de retornar ao lugar ao qual seu coração pertencia.
No mesmo ano, ela foi reconhecida com o Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos, por conta da sua luta em defesa dos direitos indígenas e por ir contra as propostas do governo federal de legalizar mineração e outras atividades com impactos socioambientais em terras indígenas.
Na ocasião, John Kerry, enviado especial do presidente norte-americano Joe Biden, relatou: “O povo Munduruku no Brasil é guerreiro de muitas formas diferentes. Tem resistido ativamente à pressão constante, violenta, ilegal e, às vezes, patrocinada pelo Estado. É extraordinária a maneira como você luta pelos pulmões do planeta, a maneira como você luta para proteger nossa terra e por todos os bens comuns que precisamos nos esforçar para salvar”.
Para ela, a premiação representa a luta de um povo que pede por socorro e espera ser ouvido. “A luta indígena pensa no coletivo. Acredite no rio, acredite na floresta”.
Os povos indígenas em tempos de pandemia
Em janeiro de 2021, os olhos e as atenções do país se voltaram para Manaus após o sistema de saúde do estado ter entrado em colapso pela falta de oxigênio.
O descaso e o abandono da região também refletem a invisibilidade enfrentada pelo povo indígena, já que o estado do Amazonas tem 63 povos indígenas.
No dia 18 do mesmo mês, começou o processo de vacinação no estado e a primeira imunizada foi Vanda Ortega, de 33 anos, a única técnica de enfermagem indígena do Amazonas.
Pertencente à etnia Witoto, ela afirmou que essa vacina significava muito para toda a população: “Quero que esse estado olhe para essas populações aqui. Os nossos povos, historicamente, são muito negados por esse sistema de poder”, afirmou.
No momento em que estava para receber a vacina, ela foi informada que quatro familiares haviam sido encaminhados para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Campos Sales por conta de dificuldades respiratórias. Ela deixou a cerimônia o mais rápido possível para prestar assistência a eles.
Nascida na comunidade ribeirinha de Amaturá, ela se mudou há 11 anos para Manaus e hoje vive no Parque das Tribos, o primeiro bairro indígena reconhecido pelo município, onde vivem 700 famílias de 35 etnias.
“Somos uma geração de sobreviventes e estamos lutando para que as nossas vidas se mantenham. Conheçam quem são os povos indígenas, pois, a partir desse momento, vocês estarão conhecendo mais sobre a sua própria história”, conclui.
Foto destaque: Ailton Krenak, Alessandra Korap e Vanda Ortega