Do caráter ou do sem caráter?
Ayrton Maciel*
Em 07.03.2021
Há alguns dias, circula em redes sociais vídeos de adolescentes – claramente da camada excluída da população, mas delinquentes – provocando arruaças em um shopping, sem que os seguranças utilizem de força bruta para contê-los. Os compartilhamentos, notadamente por seguidores do militarista Jair Bolsonaro, atribuem à adoção do “politicamente correto” – a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente e às políticas dos governos de esquerda – a culpa pelo grupo estar num shopping e a praticar desordens sem repressão. Ou seja, shopping é lugar para jovens ricos, não necessariamente educados.
O ódio que muitos reverberam nas postagens, pela situada flagrada – não acusemos a todos, nem talvez à maioria dos bolsonaristas -, é nitidamente ódio de classe e de raça. Para alguns desses cegos e fanáticos, a solução tem de ser “a solução final”: o genocídio desses adolescentes infratores, a execução por esquadrões da morte ou o desterro eterno em uma ilha deserta. Como se a morte ou o apartheid resolvesse a infame desigualdade social. Como se “morrendo os miseráveis, a miséria desaparecerá”. Para além da burrice, é desumana a concepção. Se o Brasil não mudar a sua estrutura social, os pobres delinquentes continuarão a entrar em shoppings, escandalizando os falsos.
É o resultado da histórica exclusão social. Se o Brasil não oferece educação, não concede oportunidades de trabalho, não dá assistência às famílias excluídas, não forma para atividades econômicas e de renda, milhões e milhões de outros continuarão a surgir. E os extremistas e sua baba histérica do ódio reproduzirão o discurso da “solução final”, a cada ciclo de tempo, sem encontrar paz em seus shoppings (nem nos locais mais importantes). Mas, por que o momento brasileiro – iniciado em 2018 – tem a ver com o caráter? Caráter, nos dicionários, significa qualidade distinta, índole, dignidade. Características positivas. Reúne o conjunto de traços morais e éticos de um indivíduo. A pessoa tem ou não tem.
Então, a expressão ‘mau-caráter´ é imprecisa, politicamente estéril. O correto é ‘sem caráter’, porque, de modo geral, o caráter define como o indivíduo regula as suas atitudes, dentro dos princípios da convivência e do respeito ao ser humano. Ao contrário, a pessoa ‘sem caráter’ está propensa a atitudes que beneficiem a si e prejudiquem a outros. Portanto, o que “os contra” atribuem ao ‘politicamente correto’ diz respeito ao caráter. Segregação, discriminação e extermínio revelam o desprezo à pessoa, a busca da solução que favoreça a uma parte do todo ou a mais prazerosa. É o sem caráter.
Existem a polícia e a justiça de menores e as instituições de ressocialização. A elas cabe o trabalho de reprimir, punir e recuperar. Um trabalho multidisciplinar que o Brasil não prioriza e ao qual a sociedade – em grande parcela – é indiferente, assim sendo, é culpada também. É incontestável que a impunidade estimula o crime, dá ousadia ao criminoso. Uma certeza que vale para o civil, o militar, o parlamentar, o juiz e o jovem infrator. Foi por cometer crimes contra a democracia, a Constituição e a cidadania que o deputado federal Daniel (PSL/RJ) está preso, sem que os que advogam “a solução final” para menores delinquentes sequer concordem que a lei seja para todos.
Para esses adolescentes e crianças infratoras, a solução ética, moral, cristã e justa é uma questão de caráter. Jamais poderá ser a segregação eterna, a violência do Estado, muito menos da parte de incluídos ou privilegiados insensíveis. O Brasil de hoje não é só o de hoje, é o Brasil de sua história. O Brasil social também tem mais de 500 anos. A Colônia, o Império e a República sempre praticaram o calote na dívida social.