Sofrimento, ganância… e esperança
Mirtes Cordeiro*
Em 22.03.2021
Não devemos esperar o “rufar dos tambores”.
Há alguns anos caminhamos cercados por essa tríade – sofrimento, ganância… esperança – que insiste em nos acompanhar, e agora nos faz um povo acabrunhado, desesperançado, cheio de incertezas, desempregado, sem renda, doente, oprimido por um governo sem rumo em termos de políticas públicas, negacionista, que não reconhece a extensão, letalidade e a velocidade na transmissão do novo coronavírus que já coloca o Brasil como epicentro da pandemia no mundo.
A doença, logo que chegou ao Brasil, se espalhou de imediato pelas periferias e favelas, afetando, assim, com mais intensidade, os mais pobres. Consequência de uma sociedade nitidamente dividida em classes sociais bastante diferenciadas, separadas entre os que têm muito e os que não têm quase nada para sobreviver. No meio, uma classe média que fenece cada dia.
Sendo o Brasil o sétimo país mais desigual do mundo, “quando começou a pandemia, muitas pessoas diziam que a Covid-19 iria igualar os desiguais, pois todos iriam ficar doentes, precisar de respiradores, etc. Isso era uma bobagem. A doença afeta desigualmente os desiguais, e será cada vez mais dura com os mais pobres”, afirmava Fernando Burgos, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
A pandemia acentuou de forma acelerada as desigualdades no país, tornando-as cada vez profundas em algumas áreas, como a educação, a saúde e o desemprego que vem se aprofundando de várias formas, com a automação das atividades produtivas em alguns segmentos da economia e a falência ou a desaceleração de outros setores, situações já instaladas no país mesmo antes da pandemia.
Aliás, por esse motivo, expõe de forma degradante a dicotomia entre preservar a vida e fazer a economia crescer.
Não somente a pandemia causa infortúnio. O desequilíbrio na política, as fragilidades nas gestões públicas, sobretudo por parte do governo federal, cujo presidente desde sua posse em 2019 não assumiu o comando das políticas públicas, conforme o que preconiza a Constituição, e se deleita em assediar a população com ideias negacionistas, ardilosas, desrespeitosas com o único intuito de alcançar a sua reeleição em 2022. Aliás, por esse motivo, expõe de forma degradante a dicotomia entre preservar a vida e fazer a economia crescer.
No entanto, todos que nele votaram já sabiam qual seria o rumo, porque a partir de suas falas nunca esboçou um projeto de desenvolvimento para o país e sempre reafirmou que seria contra gays, que sonegava impostos, que não estuprava determinada mulher porque era feia, que iria retomar as terras indígenas já demarcadas, que não gostava de quilombolas e muitos outros impropérios.
Enquanto isso, a vida dos pobres fica cada vez mais difícil, sem renda e com o custo de vida crescendo a cada dia que passa, com inflação de quase 7% duramente sentida pelas famílias brasileiras mais pobres, correspondente ao dobro da taxa sentida pelos brasileiros mais ricos, em um ano de pandemia. “Resultado é explicado pelo aumento no preço dos alimentos e alívio dos serviços”. (Laís Alegretti- BBC)
Também a economista Anapaula Iacovino observa que quanto menor a renda, maior é o peso da alimentação na composição dos custos das famílias. “Se a gente está falando que os alimentos estão mais caros, a gente também está dizendo que as famílias comprarão menos alimentos”, afirmou.
Esse drama persiste atualmente quando a pandemia se acentua e medidas restritivas são tomadas. A situação vai ficando fora do controle e as famílias cada vez se sentindo incapazes para prover suas vidas.
Surge novamente o auxílio emergencial.
O que o valor de R$ 170 reais poderá cobrir diante das necessidades de uma pessoa que vive só, durante um mês, quando um botijão de gás custa R$ 90 reais? O que fará uma mulher para viver com dois ou três filhos menores, recebendo R$ 375 reais de auxílio por mês? O auxílio emergencial é o combustível que alimentará a máquina eleitoral em 2022, como vem acontecendo historicamente com todos os programas de ajuda social. Para piorar ou para melhorar. Segundo pesquisadores, é sabido que alguém que ganha um salário mínimo (R$ 1.100,00) e vive com mais três pessoas, por exemplo,n está em uma situação de fome estrutural, porque o salário mínimo hoje no Brasil não alimenta adequadamente quatro pessoas, considerando os outros itens que compõem o custo de vida.
Quando a família perde sua renda, mínima que seja, a fome vai se instalando sistematicamente, com as pessoas pulando refeição, fazendo de farinha e açúcar ou do caldo de feijão, um tipo de refeição… até o dia em que as crianças começam a dormir sem comer.
Aos poucos, a população que mora na rua vai aumentando, porque são acrescidos por aqueles que não têm moradia e não conseguem pagar o aluguel.
O desejo é que quadro desolador melhore, e que no meio disso tudo brotem sementes variadas de esperança.
Somos, atualmente, uma nação com medo, apática diante da morte imposta pelo vírus, do descalabro imposto pelo governo federal, da adversidade aprofundada pela ganância dos que têm como foco de vida o lucro a qualquer custo e pela corrupção.
A solidariedade tem se desenvolvido, mas nunca será capaz de alimentar um terço da população brasileira (incluindo os que recebem o bolsa família, muitos dos quais já passam fome no Brasil).
Recursos não há para melhor enfrentar a pandemia, dizem os que fazem o governo. Mas a questão é que políticas básicas para benefício das pessoas como saúde, educação, moradia saneamento básico, nunca foram prioridade e sempre foram insuficientes para atender as necessidades. Daí a grande dificuldade para o atendimento mínimo no meio de uma pandemia. A má gestão das políticas e a corrupção quase generalizada têm sido um entrave na execução dessas políticas.
Para o governo federal a prioridade é armar a população, é promover o desequilíbrio ambiental na Amazônia, é retirar os direitos garantidos na constituição de 1988. Para o governo, se a economia estiver bem em 2022, mesmo deixando ao largo meio milhão de mortos, conforme previsto, é a garantia da reeleição.
A sociedade está doente para além da pandemia. No momento mais agudo da doença assistimos ao desfile de carros monumentais, em carreatas, pedindo a intervenção militar, a reedição do AI-5 e o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF). Muitos ali nem conhecem a consequência de uma ditadura, mas querem resguardar privilégios.
Nas cidades a polícia identifica e fecha as festas clandestinas, as baladas, os pancadões regados geralmente a drogas ilícitas, onde jovens se amontoam sem a mínima proteção contra o vírus. A maioria destes jovens segue sem proteção, sem emprego, sem renda, e sem espaços adequados a sua formação.
Segundo o IPEA, em 2013, os jovens de 12 a 18 anos incompletos correspondiam a 21 milhões de pessoas no Brasil, cerca de 11% da população, com concentração na região Sudeste, 38,7%, seguida da região Nordeste, 30,4%. A maior parte dos jovens é de negros (64,87%), 58% mulheres e a imensa maioria (83,5%) é pobre e vive em famílias com renda per capita inferior a 1 salário mínimo.
Entre os jovens de 15 a 17 anos, cerca de um terço dos adolescentes ainda não havia terminado o ensino fundamental e menos de 2% (1,32%) havia concluído o ensino médio. Os nossos jovens não dispõem de ferramentas para enfrentar os desafios da sociedade moderna. “Se de um lado é nesse momento que o jovem é exposto a um amplo conjunto de possibilidades positivas para sua formação, de outro é o período em que é exposto a um conjunto de riscos cujas consequências podem, eventualmente, ser dramaticamente determinantes de seu futuro. Só por essas razões, a juventude, em qualquer momento e em qualquer lugar, enseja cuidados e atenções especiais, não apenas por parte da família, mas também da sociedade”, assim se manifesta Paulo Tafner, diretor-adjunto de Estudos Macroeconômicos do IPEA.
A pandemia aprofundou muitos sentimentos de tristeza que ora se manifestam através do luto pelas quase 300.000 pessoas mortas e da preocupação pelas que sobreviveram, mas estão com sequelas provenientes da doença, necessitando de tratamento e do fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS).
O debate político que divide o país entre bons e maus, entre nós e eles, continua com afinco nas redes sociais, na grande imprensa, uma discussão sem diapasão, pois não tem ressonância na vida do povo.
“Quando a montanha ruge, os moradores das cercanias escutam o rugido e se mudam, vão embora de suas casas”, assim explicava um guia turístico sobre a possibilidade de uma erupção do vulcão mais próximo”. Pois aqui escutamos alguns rugidos, como direitos negados, pessoas perseguidas, ameaçadas pela lei de segurança nacional, um entulho da ditadura que permanece até hoje, ameaças ao fechamento do STF e, sobretudo, o desprezo pela vida.
Só nos restam duas ESPERANÇAS: que aconteça a vacinação em massa para afastar o vírus, e que se mobilizem vontades – alguns têm se manifestado – e se construa uma AGENDA com propostas mínimas para mudar o rumo desta história e que congregue a maioria da população para caminhar junto ao que for necessário!
Não devemos esperar o “rufar dos tambores”.
*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: noticias.uol.com.br