O calvário das mulheres na pandemia

Por

Izabel Santos*

Em 02.04.2021

A Páscoa é a vitória da vida sobre a morte, mas antes dessa “passagem” vem o calvário. Há um ano estamos vivendo as agruras da pandemia da Covid-19 e as medidas de distanciamento social adotadas que trouxeram à tona diversos aspectos das desigualdades e se revelaram sobretudo na vida das mulheres mais pobres, negras, chefes de família e moradoras das periferias, onde as políticas públicas são precárias. Esse grupo foi afetado de diferentes maneiras. Diante desses impactos e dos dias atuais de reflexão, é difícil não ver os contrastes das desigualdades que atravessamos todas nós, fruto de uma cultura machista e patriarcal e do calvário impostos a muitas mulheres pela pandemia.

O novo coronavírus deixou em evidência, especialmente entre as mais pobres, o calvário da violência, acentuado com o aumento dos casos de agressões e de feminicídios. Um dos fatores que favoreceram a violência de gênero está diretamente ligado ao fato de os agressores estarem convivendo mais com as mulheres neste tempo de pandemia, além da negligência do Estado brasileiro, que é moroso na responsabilização dos agressores – estes muitas vezes impunes – e não promove políticas públicas capazes de melhorar a qualidade de vida para as mulheres. Com a Covid-19 lidamos com um inimigo invisível, o vírus. Na violência contra a mulher, os inimigos são visíveis: companheiros e ex-companheiros que deviam ser os que protegem, mas, ao contrário, matam.

Se cotidianamente as mulheres eram responsáveis pelo cuidado da casa, das/os filhas/os, de pessoas doentes, dos animais, com a pandemia as tarefas se multiplicaram. A falta de uma divisão justa dos trabalhos domésticos é outro calvário e mostra literalmente a necessidade de se rever conceitos em relação à casa, onde é preciso fazer com que todas as pessoas, sob o mesmo teto, compreendam que esse espaço é de todas/os e não só das mulheres.

O tempo dedicado às atividades domésticas pelos homens e mulheres é desigual. Segundo dados Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2018, portanto, anterior à pandemia, as mulheres já dedicavam o dobro de horas semanais ao trabalho doméstico e/ou cuidado com pessoas, se comparado aos homens. A pesquisa recente Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia, realizada pela ONG Gênero e Número e pela Organização Feminista Sempreviva concluiu que entre 2.641 mulheres entrevistadas, 47% afirmaram ser responsáveis pelo cuidado de outra pessoa. Deste universo, 57% cuidavam de filhos de até 12 anos, 6,4% de outras crianças, 27% de idosos e 3,5% de pessoas com alguma deficiência.[1] A pesquisa aponta elementos que nos fazem enxergar as relações sexistas e desiguais no cotidiano das mulheres, e expõe mais uma vez as desigualdades que estruturam a sociedade e se apresentam de forma mais severa na vida das mulheres.

Das cruzes no calvário da pandemia, uma das mais pesadas para as mulheres foi a queda nos empregos formais e a impossibilidade de desenvolver atividades informais e, com isso, a perda de renda. A falta de creches e escolas em tempo integral para as crianças, de programas sociais de longo prazo oferecidos pelos governos acentuou ainda mais a situação de pobreza e carências das mulheres. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), realizada pelo IBGE, aponta que cerca de 7 milhões de mulheres deixaram seus postos de trabalho no início da pandemia, 2 milhões a mais do que o número de homens na mesma situação.

Não investindo recursos e oferecendo condições que venham minimizar o caos instalado, mas, como Pilatos, ele lava as mãos e joga a responsabilidade para terceiros.

Marilena Chauí, no artigo Quem sabe faz a hora, lembra Maquiavel: “O verdadeiro político é aquele que, na desordem e no tumulto, sabe discernir o momento oportuno para agir”. Mas o que vemos no Brasil é totalmente o contrário. O presidente da República apenas preocupado com as eleições de 2022 – quando poderá disputar a reeleição – descuida de uma crise sanitária na qual o país ultrapassou a triste marca de 300 mil mortos. Não investindo recursos e oferecendo condições que venham minimizar o caos instalado, mas, como Pilatos, ele lava as mãos e joga a responsabilidade para terceiros. Minimiza a situação e segue afirmando que é “Messias, mas não faz milagres”. É genocida, negacionista e desvaloriza a ciência.

Sigo acreditando que apenas a nossa organização, de mulheres feministas ou não, é o caminho para transpormos as barreiras que nos oprime e a política que nos nega, para superarmos o nosso calvário, vencendo a violência de gênero, a indiferença à divisão justa dos trabalhos domésticos, a desigualdade de oportunidades no mercado de trabalho e a falta de políticas públicas que nos afeta. Afinal, também encontro argumento para nossas lutas no “tenho sede”, uma das frases ditas por Jesus antes de sua morte, que me une a outras tantas mulheres mundo afora na busca de saciar a nossa sede de justiça. E ainda, por acreditar nos versos da Utopia, composta e cantada por Zé Vicente, tenho a certeza de que “Quando a voz da verdade se ouvir, / E a mentira não mais existir, será enfim. / Tempo novo de eterna justiça, sem mais ódio, nem sangue, cobiça, / Vai ser assim.”

*Izabel Santos é filósofa, especialista em Direitos Humanos, faz parte da coordenação do Centro das Mulheres do Cabo e coordena o Comitê de Monitoramento da Violência e do Feminicídio no Território Estratégico de Suape – COMFEM.

Foto destaque: Internet

[1] Disponível em https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2020/08/19/pandemia-impacta-mais-vida-das-mulheres, pesquisado em 19.03.2021.