A classe médica no espelho

Por

Enildo Luiz Gouveia*

Em 08.04.2021

Desde o início do ano de 2018 passei a prestar mais atenção ao que os médicos e médicas falam aos pacientes, além das recomendações médicas dentro dos consultórios. É triste falar, mas não estou surpreso com o que vi e ouvi. Recentemente, já neste ano de 2021, por ocasião do meu check-up médico anual, passei alguns minutos num consultório médico ouvindo a defesa do atual governo com frases do tipo: “ele não é genocida”; “tirar ele pra quê, ele não fez nada de errado”; médico que é contra a cloroquina é do PT” (isto inclui  os médicos e laboratórios estrangeiros), entre outras aberrações.

O alinhamento de expressiva parcela da classe médica com governos de orientação ditatorial e fascista não é de hoje. Hitler tinha um verdadeiro pelotão médico e de cientistas responsável por elaborar formas de torturas mais eficientes e experiências macabras, etc. Durante a ditadura militar no Brasil, vários médicos, militares e civis, frequentavam as salas de torturas para reanimar os torturados que haviam desmaiado ou ainda para esconder as marcas corporais decorrentes das sessões de maus tratos. Alguém ingenuamente poderia perguntar: Mas os médicos não fazem o juramento de Hipócrates, onde em um dos trechos se lê: “Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém”? Bem, é verdade que toda universalidade incorre em erro, e salvaguardaremos desta crítica os profissionais da medicina que de fato têm vocação e atendem bem indistintamente as pessoas, muitas vezes em situações adversas. Todavia, há de se considerar que não existe ciência imparcial, uma vez que o profissional de qualquer área é uma pessoa que carrega suas influências, opções e vivências de vida.

Medicina é um curso tradicionalmente elitista no Brasil. A maioria dos que conseguem entrar num curso de medicina e nele se manter, vem da classe média ou alta. De acordo com a reportagem feita pelo portal G1 com base nos dados do Exame nacional de desempenho de estudantes (ENADE) ano 2019, 80% dos estudantes de medicina são bancados pelos pais e 70% se consideram brancos, oriundos de famílias com renda superior a R$ 5.700 mil/mês. E o mais interessante; o maior percentual, 25,60% dos estudantes, vem de famílias com renda entre R$ 9 e 28 mil/mês. Sendo assim, a formação médica no Brasil reproduz a desigualdade existente entre classes sociais.

Não faltam exemplos de entidades médicas e iniciativas particulares de apoio ao governo Bolsonaro. Não foi à toa que parte da classe médica brasileira se colocou contrária ao Programa Mais Médicos, que atraiu profissionais de vários países, especialmente de Cuba, para os locais onde os médicos brasileiros não querem ir. Nunca é demais lembrar que o Programa Mais Médicos era um programa de assistência básica a saúde e contava com o apoio da maioria das prefeituras do país, bem como, da população. Se o programa tivesse continuado como antes, teríamos maior capilaridade e eficiência na assistência básica e combate a Covid-19. Porém, isto é algo que não interessa aos conglomerados de planos de saúde, nem aos médicos que embarcaram na onda bolsonarista.

Encerro este artigo reconhecendo o indispensável papel que a classe médica tem numa sociedade. Mas, não poderia deixar de tecer tais críticas uma vez que, diante de tudo que está ocorrendo no país antes e durante a pandemia de Covid-19, é triste encontrar profissionais que apesar de competentes em suas respectivas áreas de atuação, defendem o indefensável, contradizem os princípios mínimos do profissionalismo e da cidadania. Aderi de vez ao movimento Consultório Sem Partido, bem como, Igreja Sem Partido, Batalhões, Delegacias e Quartéis Sem Partido. Nestes espaços é que se manifesta a base ideológica de apoio deste desgoverno.

*Enildo Luiz Gouveia é professor do IFPE e membro da Academia Cabense de Letras.

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