O ‘jardineiro’ das flores do mal completa 200 anos
Jénerson Alves*
Em 09.04.2021
Há exatamente 200 anos, nasceu um dos mais importantes poetas franceses. Charles Baudelaire veio ao mundo no dia 09 de abril de 1821, filho de um ex-padre que trabalhava como funcionário público. Ficou órfão de pai aos 06 anos de idade. Sua mãe casou-se novamente no ano seguinte, com um militar que se tornaria diplomata da França na Espanha. Em 1841, foi expulso do colégio e o padrasto mandou-o em viagem para Calcutá, porém ele retornou à França antes de completar o percurso. No outro ano, atingiu a maioridade e recebeu a herança paterna, gastando-a com drogas e álcool na companhia de Jeanne Duval, amante com a qual se relacionou até 1856. Com uma vida desregrada, sua saúde vai entrando em decrepitude e, em 1866, sofreu um acidente vascular cerebral. Morreu em Paris, em 31 de agosto de 1867. Em que pese sua vida de perturbações, seu trabalho poético é um marco divisor na literatura, tornando-se uma referência que ultrapassa as fronteiras do seu país de origem.
É bem verdade que a literatura francesa ocupa uma posição privilegiada, irradiando-se por todo o Ocidente. Contudo, é Paul Valéry quem observa que esta marca é predominante na prosa. Apenas no século XIX, vemos nomes monumentais como Balzac, Dumas, Chateaubriand, Stendhal, Victor Hugo e Flaubert, só para citar alguns. “A ordem e o tipo de rigor que reinam em nossa língua desde o século XVII, nossa acentuação particular, nossa prosódia estrita, nosso gosto pela simplificação e pela clareza imediata, nosso temor do exagero e do ridículo, uma espécie de pudor na expressão e a tendência abstrata de nosso espírito fizeram nossa poesia bastante diferente da de outras nações, e que lhes é no mais das vezes de difícil percepção”, explica, na plaquete ‘Situation de Baudelaire’. Ainda segundo Valéry, “com Baudelaire a poesia francesa sai enfim das fronteiras da nação. Ela se faz ler no mundo; impõe-se como a própria poesia da modernidade; gera a imitação; fecunda numerosos espíritos”.
A obra-prima de Baudelaire é ‘As flores do mal’ (Les fleurs du mal), lançado em 1857 com algumas poesias censuradas. À época, ele tinha 36 anos, muitos dos seus escritos haviam sido compostos quando o poeta ainda estava na casa dos vinte anos. Um dos aspectos que chama a atenção na obra é a preocupação do autor em manter uma certa unidade entre os poemas. Em uma carta a Alfred de Vigny, datada de dezembro de 1861, Baudelaire afirma: “O único elogio que solicito para este livro é que se reconheça que ele não é um puro álbum e que tem um começo e um fim”. Vale destacar que Baudelaire recebeu grande influência do poeta norte-americano Edgar Allan Poe, cuja obra ele traduziu e comentou. Ao mesmo tempo, o francês se tornou referência para escritores como Teófilo Dias e Carvalho Dias, além de Rimbaud e Mallarmé, seus herdeiros franceses.
Sabemos que a obra de Baudelaire é marcada também por um certo niilismo, o que nos leva a realizar uma leitura um tanto cuidadosa de seus escritos, mantendo uma certa distância para não mergulharmos em um oceano de melancolia. Mesmo assim, vale a pena ler seus versos, que impressionam devido à sua perfeição formal e pela força poética, com imagens surpreendentes. Como exemplo, vamos reproduzir o soneto ‘A uma passante’, que faz parte da seção ‘Quadros Parisienses’ de ‘As flores do mal’.
À une passante (original)
La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse ,
Une femme passa, d’ une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l’ourlet;Agile et noble, avec sa jambe de stautue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.Un éclair…puis la nuit! – Fugitive beauté
Dont le regard m’a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l’eternité?Ailleurs, bien loin d’ici! trop tard! “jamais” peut-être!
Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais!
A uma passante (tradução de Júlio Castañon Guimarães)
De ensurdecer, a rua em torno a mim urrava.
Magra, esguia, de luto, na dor majestosa,
Uma mulher passou, e com uma mão faustosa
A barra do vestido erguia e balançava.Com pernas de estátua, ágil, aristocrata.
Crispado como um louco, eu bebia, histrião,
Em seu olho, céu lívido onde o furacão
Nasce, o afeto que encanta e o prazer que mata.Um raio… a noite vem! – Beleza fugidia,
Cujo olhar de repente me fez renascer,
É só na eternidade que eu te reveria?Bem longe daqui! tarde! jamais, pode ser!
Não sei onde vais, nem onde vou avalias,
Tu que eu teria amado, tu que o bem sabias!
*Jénerson Alves é jornalista e membro da Academia Caruaruense de Literatura de Cordel. Escreve às sextas-feiras.
Foto destaque: Reprodução da pintura ‘As flores do mal’, de Armand Seguin (1894).