Pegadinha epistemológica

Por

Alcivam Paulo de Oliveira*

Em 29.04.2021

Não, nada tem a ver com invenções de Silvo Santos. Também não tem a ver com o cultivo de nosso senso sádico, aquele longamente cultivado na infância e adolescência pela Pantera Cor de Rosa, o Papa Léguas ou Pernalonga: rimos da burrice e da desgraça alheia. Aliás, de vez em quando fico procurando por uma piada que tenha um personagem no papel de “escada”. Você conhece alguma?

Tem a ver com armadilhas cognitivas, sim, talvez eu acabe de inventar o termo, peço desculpas pelo neologismo. Sabe aquela história em que se pergunta quem veio primeiro, se o ovo ou galinha? Então, essa é fácil de resolver, pelo menos se acreditamos na teoria evolutiva: o ovo, porque ele já existia com os animais pertencentes à classe dos répteis. Mas a pegadinha é essa: quem vem primeiro, a ação ou a reflexão? Ela pode também ser perguntada assim: que tipo de pessoas você mais valoriza, as que são práticas ou as que são teóricas?
Aposto que você e meio mundo de gente, pendeu para o lado da ação… Não!?!? Então você é o que na estatística se chama ponto-fora-da-curva. Conceito muito bom para explicar o que não está dentro das regularidades… Mas isso é outro assunto.

A pergunta acima trata-se de uma pegadinha porque ela é mal colocada. Ela traz um pressuposto: a relação entre ação e reflexão é “re-apresentada” num segmento de reta. Assim, cabe a pergunta de quem vem primeiro, já que todo segmento de reto tem um ponto zero (de partida) e outro ponto “n”, de chegada. Só que não…

Ação e reflexão andam juntas, sempre, são sinônimos de teoria e prática. Não há prática/ ação que não tenha origem numa reflexão e vice-versa, seja ação minha ou de outras pessoas, seja reflexão minha, ou de outras pessoas. Mesmo as ações que a gente faz por reflexo, quer dizer, sem pensar, têm uma teoria, uma reflexão, uma visão de mundo, uma compreensão (atitude de quem empreende junto com outro) que dar-lhe fundamento (por trás, por baixo, escolha). Por exemplo, dirigir. Quem já passou pelo processo de aprendizagem, sabe o quanto parece difícil no início. Fazer tantas coisas ao mesmo tempo: controlar acelerador, freio, embreagem, marcha, direção, sinal de alerta, outros carros, curvas … Ufa!! Depois que se aprende, se incorpora tudo, o conceito, a lógica, passa integrar o seu corpo e assim ele reage, fazendo esquecer que há uma teoria por trás.

O mesmo acontece com outros tipos de conceitos, por exemplo, conceitos morais. Ouve-se um palavrão ou a narração de uma cena num lugar impróprio e alguém enrubesce, fica vermelha de vergonha. É o corpo gritando: isso não é moralmente correto! Meus valores morais não concordam que isso seja dito assim!

Faça um teste. Em um ambiente coletivo de pessoas que você conhece pouco, como uma sala de aula, faça um convite para uma festa para três pessoas. As respostas delas dirão sobre seus valores, como algo do tipo: o importante é viver o agora! Ou, preciso saber antes de decidir! Ou ainda, sei do tipo de festa que você pode frequentar e não gosto delas!

Vai acontecer a mesma coisa em toda e qualquer ação/prática humana que poderão ou não gerar outras reflexões /teorias. Mas aí já não é tão fácil. É preciso que ou a pessoa tenha o “hábito”, isto é, tenha incorporado a atitude reflexiva, de modo que ela sabe, em algum momento terá que refletir sobre o que fez ou faz. Mesmo que esteja dando certo, irá se perguntar, como posso melhorar? Ou então é preciso que se sua ação seja perturbada por algo que venha de fora ou de dentro de si: por que estou fazendo isso dessa maneira? Por que não está dando certo isso que estou fazendo? Por que não consigo acertar?

Quando olhamos a relação ação-reflexão-ação dessa maneira, facilmente constatamos que ela não pode ser “re-apresentada” em um segmento de reta, mas exige (as palavras têm poder!) ser representada por um círculo. Bingo! O círculo não tem ponto zero. Ele pode ser indicado aleatoriamente. É como a poesia de Arnaldo Antunes, você pode começar em qualquer ponto e sempre fará sentido. Siga o círculo e não caia mais na pegadinha…

Massa não é!?!? Só que não! Quando mostrei essa crônica a uma leitora muito próxima, ela logo questionou: espera aí, se seguirmos o círculo não vamos sair do lugar. Vamos ficar dando volta!

Nesse caso nossa linda “re-apresentação” da realidade em forma de círculo não corresponde a verdade, pois, no real, na vida da gente, toda vez que refletimos tendemos a melhorar, a fazer melhor. No mínimo a fazermos diferentes. E agora!?!?!
É preciso fazer algo nessa “re-apresentação” para que ela tenha uma correspondência melhor com a vida cotidiana. E vamos fazê-lo… Na próxima crônica.

*Alcivam Paulo de Oliveira é professor.