Sobre desgoverno e mortes

Por
Ayrton Maciel*
Em 03.05.2021
Nada tão estereótipo de um desgoverno do que um general tomando vacina escondido.
As consequências de governos incompetentes ou corruptos historicamente já se conhece. Em geral, os dois fatores acabam interligados. É o que torna mais terríveis – sofridos, dramáticos, custosos, irreparáveis, traumáticos, prolongados, qualquer que seja o parâmetro – seus efeitos. Porém, e se adicionarmos às consequências a causa ‘falta de remorsos? Ou seja, a inexistência de escrúpulo? Conclusão: um desgoverno não mede consequências, nem se comove por sua desumanidade. Ainda que alegue combater uma das outras causas. Afinal, acima de tudo e acima de todos está a sua motivação.
Eis o Brasil, um pária sanitário internacional, uma ameaça entre as nações. Eis os efeitos de um desgoverno nacional, aquele que se move sem se comover por sua impiedade: estrategicamente sem planejamento – há de se percentualizar aqui a incompetência -, inerte por tática de gestão, negacionista por convicção filosófica e ideológica e sem empatia por descompaixão. Quantas mortes poderiam ter sido evitadas em mais de 400 mil? Jair Bolsonaro mentiu ao chamar de “gripezinha”, desdenhou das perdas por não ser “coveiro”, coroou a culpa dos omissos ao transferir cobranças para os governadores.
Eis o abandono nacional, o cada um por si, e Deus por todos. Pois, Ele (Deus, não Bolsonaro) está acima. Exceto do Brasil, na semântica absoluta da frase “Brasil acima de tudo”. Há três meses e meio, desde que a primeira brasileira foi vacinada contra a Covid-19, o país convive com a angústia do vaivém das vacinas, do “tem vacina, não tem vacina”, em particular a que mais está salvando brasileiros, a CoronaVac (82% das imunizações), por ser da China e uma iniciativa do governador de São Paulo, João Dória. Essa é uma das consequências do não-planejar, da inércia consentida, da negação – a ideologia da ignorância – e da antipatia.
Estados e municípios, pelo Brasil, estão sem a segunda dose e milhares de idosos estão expostos aos riscos da imunização fora do prazo, ampliando a angústia da vida fora da normalidade que há mais de um ano atormenta a Terra. Se o Brasil fosse o Planeta e os brasileiros a humanidade, a extinção da espécie – pela descompaixão do Deus de Bolsonaro com a vida – estaria em debate. Claro que é um exagero, a humanidade vencerá o vírus, como os brasileiros superarão o vírus. Desgovernos existem não só por corrupção e incompetência, mas, também, por crueldade. Nada tão estereótipo de um desgoverno do que um general tomando vacina escondido. E que não se diga que é só um general disciplinado.
*Ayrton Maciel é jornalista. Trabalhou no Dario de Pernambuco, Jornal do Commercio e nas rádios Jornal, Olinda e Tamandaré. Ganhador do Prêmio Esso Regional Nordeste de 1991.
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