A pegadinha epistemológica e o amor

Por

Alcivam Paulo de Oliveira*

Em 08.05.2021

“Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és”
(Caetano Veloso – O Quereres)

Gilberto, um colega do curso de Técnico em Estradas do ETEPAM no final da década de 70, dizia que se alguém quisesse falar algo de amor, não precisaria inventar nada, bastava recorrer a Roberto Carlos. Pra dizer que amava, que tinha ciúmes, que estava arrependido, que estava apaixonado, que sofria por causa daquele amor, para contar a história toda do romance, enfim, até para dizer que a amada jamais o esqueceria, porque ela não encontraria nada melhor, bastava recorrer a Roberto Carlos.  Tantos anos depois e parece ser assim mesmo. Hoje, já não é apenas amor, é também sexo, orgia, machismo, tudo que se tem direto na relação a dois, a três…

Agora, todas as músicas de amor falam sempre da mesma forma, quer dizer, trazem sempre a mesma lógica da paixão de Romeu e Julieta, seguem uma lógica: se eu te amo e tu me amas, tudo será para sempre. Agora, se você não me ama mais, é porque deixou de ser aquela… E se você está em dúvida é porque já não me ama. Há até aquela frase das antigas, ilustradas em figurinhas cheias de lirismo: amar é…

Por tudo isso fiquei perplexo quando entendi (acho que entendi) a música “O Quereres”, de Caetano Veloso. Talvez porque naquele momento eu procurasse justamente uma explicação (re-apresentação) do que vivia; talvez porque tivesse começado a entender, acho eu, o que é dialética. O fato é que percebei nela algo muito diferente, o amor entre duas pessoas é “re-apresentado” como conflito.  E não estou sozinho nessa perplexidade diante da música. O Google me informa que há 27.000 resultados para o descritor “O Quereres interpretação”, com comentário, mais pessoais e até dissertações de tese.

Amar é viver em conflito com a pessoa amada, porque há nela atributos que queremos, mas que ela não quer tê-los. Sim, o ideal seria construir um amor perfeito, sem haver dor… mas o amor não permite isso. Ao contrário, arma uma cilada e põe os amantes em contradição. É a bruta flor (como uma flor pode ser bruta?) do amor. O amor é formado por um par de contrários: o querer e o não-querer, o amar e o des-amar.

Fui desenvolvendo intimidade com a música e comecei a perceber que ela tinha algum tipo de relação com Hegel e sua certeza de que não pode haver apenas duas respostas para uma pergunta e que toda afirmação traz com ela uma negação; com Marx e a contradição entre capital e trabalho como fundamento do modo de produção capitalista; enfim, com Paulo Freire e sua  certeza de que educar é ser educado, ao mesmo tempo! Ou seja, fui relacionando a definição de amor de Caetano à lógica dialética, descobrindo que ela é um modelo teórico para entender e explicar as contradições do relacionamento amoroso. E nessa compreensão / explicação, os conflitos são inerentes aos relacionamentos, que não existem sem eles. Ao mesmo tempo O Quereres denuncia a ilusão do amor tipo romeu-e-julieta. Deve haver desse tipo (porque há de tudo no mundo) mas não como regra. Na verdade, sempre desconfiei que se eles não tivessem cometido o suicídio, mais cedo ou mais tarde, Julieta diria a Romeu: você anda mudado, já não me beija como antes, já não me faz carinho… E Romeu devolveria: é, mas antigamente você estava sempre cheirosa e carinhosa quando a gente se encontrava, e agora…

A intimidade me fez levar a música para a sala de aula, quando tinha que conversar com meus alunos sobre dialética, na busca de amansar o conceito, porque, pense numa palavra indomável!?!? E é indomável primeiro por sua polissemia. Ao longo da história, dialética é usada por Platão para definir uma coisa, os estoicos a usavam para definir outra, Kant a aplica como algo também diferente, Hegel, Marx, Paulo Freire…e por aí se vai. Fui atrás da história do conceito e descobri que ela tem quase 2.500 anos de existência, pelo menos se contar de sua primeira aparição com Heráclito, um filósofo grego que viveu no século V antes de Cristo. Descobri também que o sentido dado por ele, só foi retomado por Hegel, no século XIX, e logo depois, por Marx e mais tarde por Paulo Freire, dentre outros.

Para entender a dialética é preciso sair da caixa e acreditar que a linguagem é como cachimbo, é corrido pela boca, mas também a entorta. Claro, é preciso muito mais que duas páginas. Então encare o que vem a seguir como uma provocação para compreender a dialética.

Você já assistiu o filme “A Chegada” (https://www.youtube.com/watch?v=rNciXGzYZms) ? Assista, vale a pena, porque é uma ficção científica de verdade (e não os romantismos adolescentes da Marvel). Baseado em um romance que, por sua vez se baseia em uma teoria da linguagem. Essa teoria afirma que “a estrutura e o vocabulário de uma língua são capazes de moldar os pensamentos e percepções de seus falantes”. (https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2016/11/entenda-teoria-linguistica-do-filme-chegada.html). Pois bem, entender que a realidade (minha e do mundo) é regida pela lógica dialética, exige mudança de postura; exige saber diferenciar contradição de incoerência, conflito de guerra, distanciar instabilidade de mudança. Exige renunciar à lógica formal, à lógica estabelecida pela forma (Sistematizada por Arsitóteles), em que, numa determinada sentença, A só pode ser igual a A; se não for A, será B. Mas não pode ser A e B, ao mesmo tempo.

Para todos nós, educados nessa lógica, a ponto de incorporá-la e aplicá-la inconscientemente, superá-la é coisa difícil de fazer! Trata-se de uma opção pela lógica que rege a realidade. Lembra da pergunta: e isso têm lógica? Ou da afirmação: é lógico!!! Então, por trás delas tem uma opção (incorporada, habitual): se compreendo o critério da verdade da lógica como identidade ou como contradição.

Por exemplo, posso afirmar: é lógico que existe luta de classes! É lógico que toda relação educativa é relação de contradição entre o que ensina e o que aprende, porque cada um deles traz dentro de si um que ensina e outro que aprende. É lógico que nunca houve e nem haverá paz entre nós seres humanos. A prova de que nunca houve é o dinamismo, o desenvolvimento histórico, se há história é porque houve conflito! Se houve conflito é porque havia contradição! A certeza de que sempre haverá, mora na contradição que cada um de nós traz dentro de si mesmo. E até quando? Hegel e Marx profetizaram um fim para a dialética. Para o primeiro não haverá mais conflito quando Sociedade e Estado forem um só; para o segundo, quando não houver mais sociedade com classes diferentes. Otimistas esses rapazes. Se bem que prefiro eles aos ilusionistas que afirmam o conflito como disfuncionalidade da sociedade ou de nossa psiquê.

Convido-lhe, pense comigo: o que explicar melhor a realidade (e não o ideal) do amor, é essa re-apresentação de Caetano ou a de Romeu e Julieta? É ela ou re-apresentação das músicas de Roberto Carlos, de Zezé di Camargo e Luciano, Luiz Gonzaga, Zeca Pagodinho e etc.? Lembre-se, essa opção que cada um pode fazer, não é em função da letra mais linda, da melodia mais gostosa. Pode ser, mas é sobre a lógica. Sim, e a opção não pode ser do tipo casuísta. Se vale para as relações de amor, deve valer também pra as outras relações; se vale para a relação capital e trabalho, deve valer também para a relação educador e educando; se vale a realidade que tá fora de mim, vale também para a que está dentro, vale para a relação ação-reflexão. Lembrou da pegadinha epistemológica? Então, fazendo essa opção, poderemos entender porque é que a ação-reflexão não pode ser re-apresentada apenas por um círculo, pois assim indicaria que não saímos de lugar… o círculo precisa ser representado em três dimensões. Agora poderemos retomá-la.

*Alcivam Paulo de Oliveira é professor.