Corpos negros e os efeitos da Covid-19
Lucia Helena Silva Barros de Oliveira*
Em 08.05.2021
“A gente combinamos de não morrer.” (Título do conto de autoria de Conceição Evaristo)
O ano de 2020 ainda estava em seus primeiros meses quando fomos apanhados de surpresa com a chegada do vírus SARS-CoV-2 ao Brasil. Até então, havia apenas notícias esparsas de sua circulação — já nefasta — na China, razão pela qual não se via motivo para alarme por estes lados. Afinal, ainda não fora declarado o status de pandemia e, em nossa ingenuidade, tratava-se de uma realidade ainda circunscrita àquele país distante, do outro lado do planeta. Mal sabíamos que, em questão de dias, nos veríamos confrontados com um vírus de periculosidade gigantesca, que, até agora, já provocou cerca de dois milhões e novecentas mil mortes em todo o mundo — mais de 400 mil vidas ceifadas em nosso país.
Em março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou estado de emergência na saúde pública, e o mundo debruçou-se sobre as providências que se fariam necessárias para conter a crescente disseminação do vírus e a contaminação das pessoas. Assim, em março de 2020, com a declaração oficial da pandemia, o Brasil passou a vivenciar uma nova e, até então, desconhecida realidade: quarentena, isolamento social, medidas de distanciamento, higienização redobrada, obrigatoriedade no uso de máscaras, entre outras medidas que resultaram em uma mudança radical na vida de cada um de nós.
No entanto, as medidas sugeridas para frear a pandemia — algumas implementadas com maior sucesso; outras ainda enfrentando resistência parcial — foram e são motivos de preocupação. Como manter medidas de isolamento ou distanciamento nas áreas periféricas de nosso país? Como proceder em nosso Rio de Janeiro, meu local de fala? Sim, a situação é preocupante! Isso porque é notório o grande número de pessoas que residem em áreas carentes, em lares que contam com poucos recursos e com uma estrutura para lá de precária — habitações que não têm, em sua maioria, abastecimento regular de água ou um sistema de esgoto adequado. Além disso, essas casas são, em geral, ocupadas por quatro, seis, oito pessoas ou mais, o que impede o cumprimento mínimo das recomendações da OMS em relação ao quadro pandêmico.
Nesse contexto, escancararam-se, ainda mais, as dificuldades de nosso Brasil, e essa difícil situação vem vitimando cada vez mais os corpos negros. Sim! Os corpos negros são os mais atingidos, pois os residentes em comunidades pobres são, prioritariamente, negros, e isso, infelizmente, é reflexo dos tempos vividos anos atrás, quando a escravidão aniquilava o povo negro.
Ressalte-se que, embora tenhamos a consciência de que os corpos negros são os mais alcançados pela pandemia, há também o aspecto de que os dados são subnotificados, pois muitos são aqueles que, em decorrência de suas precaríssimas condições econômicas, sequer conseguem chegar a uma unidade hospitalar. E, quando conseguem chegar a um local de atendimento médico, o perfil racial também pesa contra eles, resultando em, frequentemente, serem deixados de lado.
No entanto, não é apenas nas comunidades carentes que vemos os reflexos da pandemia nos corpos negros. Isso também ocorre em nosso falido sistema carcerário, que abriga, sobretudo, pessoas negras — e isso em números alarmantes. Ocupando a infeliz posição de terceira maior população carcerária do mundo, o Brasil soma cerca de 860 mil pessoas presas, segundo dados extraídos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Mais da metade da população carcerária é negra, merecendo destaque que, nos últimos 15 anos, o percentual dessa população aumentou, enquanto o percentual da população carcerária de cor branca diminuiu.
Pois bem! Nesse cenário, os corpos negros — presença maciça nas comunidades e no sistema prisional — são os que mais sofrem os reflexos da pandemia provocada pela contaminação do coronavírus. Assinale-se que esses lugares, inclusive, servem como palco de desobediência às regras para a contenção da pandemia — não por culpa dos moradores ou das pessoas presas, mas, sim, em virtude das mazelas que assolam essas populações.
Nesse sentido, as comunidades enfrentam, sobretudo, dificuldade para cumprir as regras de distanciamento e isolamento social, pois vivenciam, diuturnamente, a precariedade vivida e suportada pelo local em que habitam. O absoluto estado de miséria — e não mais a pobreza — aumenta a cada dia, em face da profunda crise econômica suportada e acentuada pela pandemia. Não é demais lembrar que as pesquisas apontam que o índice de transmissão do vírus em comunidades carentes é bem mais elevado do que aquele nos bairros nobres das cidades.
Também o sistema prisional, que já ostentava situação precária antes da pandemia, é marcado pelas dificuldades em atendimento à saúde, falta de água e de higiene local, além de outras situações decorrentes de um sistema há muito falido, trazendo-nos a triste lembrança dos navios negreiros, também vitimados por similares carências. Já lembrava Castro Alves sobre as condições desumanas do transporte de escravos:
(…) Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!…
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Como cumprir as medidas sugeridas e recomendadas pela Organização Mundial de Saúde no âmbito de um sistema carcerário falido, que ostenta um número exagerado de pessoas presas — em sua maioria, negras?
A saúde é dever do Estado, cabendo-lhe proporcionar assistência às pessoas presas e garantir que as penas sejam cumpridas com dignidade, mas nós sabemos que a lotação do sistema carcerário representa verdadeiro obstáculo à garantia desses direitos, e as unidades prisionais não contribuem em nada para uma vida saudável; muito pelo contrário, é fonte de proliferação de doenças. É fato que as unidades prisionais já convivem há muito tempo com doenças como tuberculose, pneumonia, sarna, entre tantas outras. A Covid-19 acaba tornando ainda mais vulnerável essa população carcerária — composta, em sua maioria, por corpos negros.
O Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e o Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas apontam uma média de 83.587 casos de Covid-19 registrados desde o início da pandemia. E esse número elevado ainda pode estar subnotificado, em face das diversas deficiências que nos rondam, até mesmo a ausência de testes para identificação da doença. Tamanha perplexidade na situação do sistema prisional levou a Defensoria Pública do Estado de São Paulo a denunciar à Corte Interamericana de Direitos Humanos a situação das unidades prisionais daquele estado, sendo apontado, inclusive, o racionamento de água, o que, a toda evidência, atua na contramão da premente necessidade de higiene.
O fato é que o número de pessoas encarceradas revela seletividade em nosso sistema penal. O percentual de pessoas negras presas aumentou, de forma significativa, nos últimos anos, enquanto o percentual de brancos diminuiu, revelando, portanto, a acentuada desigualdade social em nossa sociedade.
As periferias são marcadas, a ferro quente e sofrimento, por desemprego e fome. A constante luta pela sobrevivência aponta para a perpetuação da sempre difícil vida das mulheres e dos homens negros, remetendo-nos às amargas memórias dos tempos sombrios da escravidão. Sim, memórias, pois, mesmo decorridos tantos anos, ainda sentimos, literalmente, na pele os reflexos das privações e submissões sofridas.
Já caminhando para nossa despedida, voltamos à frase-título de nossa epígrafe: “A gente combinamos de não morrer”, que ilustra, à perfeição, a luta que ainda se trava contra as mazelas decorrentes do racismo em nossa sociedade, e concluímos com a reflexão de Ivan Lins em “Novo tempo”:
No novo tempo
Apesar dos perigos
Da força mais bruta
Da noite que assusta
Estamos na luta
Pra sobreviver
Pra sobreviver
Pra sobreviver
Pra que nossa esperança
Seja mais que vingança
Seja sempre um caminho
Que se deixa de herança
No novo tempo
Apesar dos castigos
De toda fadiga
De toda injustiça
Estamos na briga
Pra nos socorrer
Pra nos socorrer
Pra nos socorrer
*Lucia Helena Silva Barros de Oliveira é defensora pública do Estado do Rio de Janeiro; atual coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro; mestre em Direito; e professora de Direito Penal da Fundação-Escola da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.
Artigo publicado originalmente no portal Justificando.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.