Reformando uma sociedade de castas
Ayrton Maciel*
Em 12.05.2021
Nas castas superiores, todos conspiram para que o Brasil sempre mude 360 graus. É mudar para continuar no mesmo estágio.
Calça curta, camisa por dentro, sapatos limpos, fardamento escolar no estilo militar. Era coisa do período. No ensino fundamental, recebia-se – com as restrições da época – as primeiras lições de história, cultura, sociedades e estudos sociais do mundo. Tinha-se as primeiras noções de estágios de desenvolvimento econômico-social nos continentes, as formações das nações e países, as guerras a partir de etnias e tribos. Na medida em que se ascendia de ano escolar, a divisão do mundo entre capitalismo e comunismo, a Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética, estudos também sob restrições do regime militar da época.
Os níveis de civilização e sociedades impressionavam, mas eram as realidades entre as nações. Em meio ao subdesenvolvimento e pobreza – a nossa encoberta pelos militares -, a mais chocante realidade vinha da Índia, no continente asiático, já com mais de um bilhão de seres humanos, população menor em 100 milhões, hoje, que a da China. Era angustiante estudar a sociedade de castas da Índia, o que levava a uma incompreensão: como um país tão populoso e grande – em pleno século 20 – ainda vivia dividido por um sistema de castas? E mais absurdo: tendo na sua independência (do Reino Unido) bases democráticas.
O Brasil está distante da tradição indiana. No entanto, só tem do que se envergonhar da herança do genocídio indígena e da escravidão dos negros. Para além da violência do branco, restam insuperáveis a pobreza extrema, suas sequelas sanitárias, suas deficiências educacionais – que obstruem avanços – e a desonra histórica. Distante da tradição, próximo da indiferença: classes sociais média e alta brasileiras nunca se envergonharam do que representam e reproduzem. Aí, nos vem uma indagação que nos assemelha à Índia: estamos construindo uma sociedade de castas? Onde os “sudras” – desprovidos de direitos, bens e senso crítico – existem e se justificam para servir as classes (castas) superiores? O Brasil está sempre reformando.
O sistema de castas da Índia foi abolido pela Constituição da Independência. Tradição, entretanto, não é abolida por lei. No Brasil, favelas, palafitas, mocambos e barracos são o abrigo da pobreza e da indiferença da escravidão. Para além disso, nossas castas superiores – senhorios, militares, eclesiasticos, togados – jamais se ativeram a construir uma sociedade menos desigual, de mecanismo de divisão de riquezas mais equitativo, de compromisso futuro por um país mais harmônico. Por isso, uma chacina – não a prisão – de criminosos por policiais, em favela, choca e indigna parcela da população, mas é vista por outra grande parte como “justiça”. Logo se esquecerá, até que outra chacina venha relembrar. É casta superior eliminando casta inferior.
Nas castas superiores, todos conspiram para que o Brasil sempre mude 360 graus. É mudar para continuar no mesmo estágio.
Por isso, simultaneamente, uma reforma da Previdência preservando privilégios para uma casta de servidores públicos – a elite das carreiras de Estado (magistrados, militares, procuradores, auditores) -, em detrimento de uma base miserável, privada e pública, ofende a uma parcela, porém é indiferente para a maioria. Logo passa, esquece-se. É o senso das castas: as reformas no Brasil nunca foram ponto de partida para a construção de um país com menos estratos herdados da escravidão e mais classes aproximadas. Nas castas superiores, todos conspiram para que o Brasil sempre mude 360 graus. É mudar para continuar no mesmo estágio.
Nada como viver (bem) em uma sociedade de castas, desde que se seja dos “brâmanes”, “xatrias” ou “vaixás”.
Assim, não surpreende o presidente Jair Bolsonaro autorizar e o Ministério da Economia publicar portaria que altera regra salarial de militares da reserva e servidores aposentados, beneficiando a si próprio e a ministros, ocupantes de cargos comissionados ou eletivos. Antes, a soma dos salários não podia ultrapassar o teto (atual) constitucional de R$ 39,2 mil (salário de ministro do STF). Agora, somente será abatido o que superar o teto em cada um dos dois salários. Nada como viver (bem) em uma sociedade de castas, desde que se seja dos “brâmanes”, “xatrias” ou “vaixás”.
*Ayrton Maciel é jornalista. Trabalhou no Dario de Pernambuco, Jornal do Commercio e nas rádios Jornal, Olinda e Tamandaré. Ganhador do Prêmio Esso Regional Nordeste de 1991.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: Internet