Veja, ele conseguiu! E se ele conseguiu… Sobre fakes oficiais e dialética

Por

Alcivam Paulo de Oliveira*

Em 11.05.2021

Morador de rua estudou por quatro meses e conseguiu garantir o 1º lugar no concurso da Prefeitura (Foto: Paulo Barbosa/G1)

A foto é da reportagem publicada pelo G1 em 2015 (http://g1.globo.com/minas-gerais/triangulo-mineiro/noticia/2015/12/morador-de-rua-passa-em-1-lugar-em-concurso-publico-para-coveiro-em-mg.html) mas poderia ser outra. Vira e mexe vemos na TV, nos jornais e em propagandas, algo desse tipo, relatando um sucesso impossível de alguém. São fatos que enchem de esperança os corações, mas também servem de referência para encherem de culpas algumas consciências: se ele conseguiu, porque outros, por que eu não consigo? São também fatos que reforçam pressupostos utilizados como códigos para se interpretar a realidade, como hermenêutica para decodificá-la. Uma delas é a meritocracia: ganha mais quem tem maior mérito!

Não que eu seja contra a esse código de justiça, o chamado código comutativo: erros são trocados por penas e acertos (méritos) por honrarias e reconhecimentos, inclusive financeiros. Mas, é que ele não é o único código. Por exemplo, quando se considera as famílias e as relações entre pais, mães e filhos, há um outro código, o distributivo: dá-se mais a quem mais necessita. Foi um cientista político italiano, Noberto Bobbio, quem me apresentou o conceito. Porém, ele está presente em outras fontes, como a parábola do filho pródigo no evangelho de Lucas.

Não é difícil de entender como essa teoria fundamenta algumas práticas, por exemplo, todas as leis que se referem a cotas. O PROUNI ou a Lei de Cotas Raciais e Sociais baseiam-se na discriminação positiva: há pessoas na sociedade que merecem privilégios pela sua condição histórica e social. Elas não podem ser tratadas como um “igual” aos outros, porque, independentemente da sua vontade, encontram-se em situação desvantajosa para concorrer com os demais. Veja esse vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=L177yGji8eM. Não consigo lembrar de nada mais claro para sensibilizar alguém sobre a impossibilidade do tratamento justo, considerando todos como iguais!

Parece, contudo, que não resistimos, nos emocionamos, as lágrimas vêm…e quando se trata de uma vocação artística ou esportiva “descoberta” quase ao acaso… aí não tem jeito. O “case” de sucesso é bombado! E a verdade massificada é esta: sim, você é capaz! Se esforce, lute, tenha pensamento positivo que seu dia chegará. Seja insistente como a viúva do evangelho e você será ouvido, suas preces serão atendidas. Se não forem, é porque sua fé é pouca. Se você não conseguir é porque não se esforçou o suficiente.

Digamos que todas as pessoas que eram economicamente ativas no Brasil em 2020, cerca de 140 milhões, tivessem como sonho comprar um carro novo naquele ano. Apenas 2,01 milhões teriam conseguido! Reza, dedicação ao trabalho, ajuda de santos, pensamento positivo… nada faria com que os 138,9 milhões restantes comprassem um carro novo, porque neste ano apenas 2,01 milhões de carros novos foram produzidos no país. Certo, carro é um item de consumo caro, mas, e escova de dentes? Em 2015, segundo informação da Associação Paulista de Cirurgiões-Dentistas, para uma população de cerca de 210 milhões de habitantes, o Brasil produziu 380 milhões de escovas. A conta é fácil, se a escova deve ser trocada a cada três meses, então há um déficit de algo em torno de 250 milhões de escovas. Ou seja, nem reza, nem pensamento positivo de autoajuda resolveriam este déficit. Ou tem quase metade da população sem escova, já que os 380 milhões atenderiam 120 milhões de pessoas, ou tem muita gente usando uma escova por ano!
É isso mesmo, o acesso a bens materiais, culturais, políticos, sociais etc. é condicionado pela produção, pela sua quantidade. Nem mérito, nem reza braba resolvem. Nem autoajuda, nem coaching…

Assim, quando vejo aquelas tais notícias começo a interpretá-las considerando que tudo está relacionado com tudo, que não dá para separar um setor, uma classe social e muito menos uma pessoa, das relações sociais sistêmicas; considerando que o conflito nessas relações é algo inerente, que ele não é uma disfunção social, as contradições que geram esses conflitos devem ser consideradas como características “naturais” dos sistemas sociais.

E ninguém traz a substância da pobreza ou da riqueza em seu DNA.

Em outras palavras, esses casos de sucesso são exceções que confirmam a regra: todos os pobres são excluídos do acesso a um imenso conjunto de bens, incluindo escolaridade para passar em concurso, por isso que chama tanto a atenção que um pobre tenha conseguido! Oooooopssss, falei “pobre”?! Hummm, outro erro! Na verdade, chamar alguém de pobre é atribuir a ele um substantivo, aquilo que diz respeito à sua substância. E ninguém traz a substância da pobreza ou da riqueza em seu DNA. A existência da pobreza se deve a processos históricos e sociais, então as pessoas adquirem a qualidade da pobreza ou da riqueza, de modo que os termos são adjetivos: empobrecido e enriquecido!

Deste modo, leio o fenômeno social como fenômeno resultante dos conflitos sociais presentes na história humana, que se constituíram ao longo dessa história e foram moldando as estruturas sociais. Foi assim que uma sociedade dirigida por poderes tradicionais, na Monarquia, passou a uma sociedade dirigida por poderes econômicos nas sociedades de Mercado.

Faço então, um exercício de leitura daqueles casos a partir da lógica dialética e isso me mostra tais casos com nítidos traços de fake news… Essas notícias visam afirmar a meritocracia, por isso, mentem, já que a meritocracia, mesmo sendo pertinente, não pode ser aplicada de forma ampla, geral e irrestrita!

Certo, eu sei que sim, há singularidades que devem ser reconhecidas e que o caso de Antônio é emocionante; sim, sei que as pessoas podem ter vontade, podem lutar e vencerem na vida; sei também que nenhum cientista social conseguiu resolver plenamente o conflito entre determinação estrutural e determinação da ação do sujeito, se somos produtos do meio ou se produtos de nossos esforços. O assunto é espinhoso. Mas não quando vamos aos extremos. Não há dúvida que o capital cultural de uma pessoa, valores e conhecimentos que ela vai adquirindo ao longo da vida, seja na forma de habitus, de diplomas ou de livros e peças de artes, depende sim do meio em que vive, de suas relações e das relações sociais de suas famílias (capital social) e do poder econômico que possui. Claro, há sempre a possibilidade de uma ação racional e consciente do sujeito, mas… Mas, entre ter uma explicação mentirosa para essas questões ou ficar com a análise que reconhece determinações estruturais, mesmo limitadas, prefiro a segunda…

*Alcivam Paulo de Oliveira é professor.

Foto destaque: Internet