Racismo defensorial: perpetuação da violência pela instituição ombudsman

Por

Ígor Araújo de Arruda*

Em 25.05.2021

Em 1809 surgia na Suécia a figura político-jurídica do ombudsman, cuja abertura conceitual permite indicá-lo como ouvidor, provedor ou representante do povo e do cidadão contra a arrogância autoritária do poder e o autoritarismo ou abuso público.

Essa invenção sueca buscava “lidar com o desamparo do indivíduo diante de abusos e segredos das autoridades e excelências do reino, além de salvaguardar os direitos dos cidadãos diante dos excessos do poder, ouvindo as queixas e clamores do povo, supervisionando a aplicação da lei por juízes e servidores públicos, e realizando inspeções contínuas nos órgãos públicos” (WALLIN, 2014, página 184-185).

Nesse mesmo período do início do século 19, agora no Brasil, a realidade histórica ainda era distante da criação vanguardista e disruptiva do ombudsman, cuja característica constitucional e concorrente — não exclusivista — foi reconhecida à Defensoria Pública, após mutações e reformas constitucionais significativas (EC 45/2004, 69/2012, 74/2013 e 80/2014) [1].

De 1808 a 1889, o Brasil passou por intensas transformações em relação a escravização, tráfico negreiro e enfrentamento do racismo, com a abolição paulatina da escravatura.

A independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822, não abarcou todos os cidadãos: libertou politicamente os brancos, mas não socialmente os negros, segundo o historiador Manuel de Oliveira Lima (GOMES, 2013, p. 227).

Ou seja, o Brasil se tornou independente enquanto nação, mas não enquanto sociedade livre, justa, igualitária e solidária, por isso posteriormente se tornou missão constitucional e objetivo republicano (artigos 3°, I, e 5°, I, da CRFB/1988).

Embora atribuída formalmente à Lei Áurea de 13 de maio, de 1888, a abolição da escravização de negros passou por reformas legais, além de movimentos e resistências populares, como a primeira lei de combate ao comércio negreiro de 1831, chamada de “lei para inglês ver”, já que aprovada por pressão do governo britânico e sem efetiva transformação social; a Lei Eusébio de Queirós, de 1851, sobre a proibição do tráfico negreiro com a África, o que aumentou o tráfico interprovincial.

Ademais, houve a Lei do Ventre Livre, de 1871 — em que filhos(as) de cativas nasciam livres —, e, por fim, a Lei dos Sexagenários de 1885, a qual libertou escravos a partir dos 60 anos de idade num período de maior necessidade de proteção trabalhista, social e previdenciária, ou seja, os ex-cativos ficaram à margem da sociedade e do Estado.

A Lei Áurea foi capaz de abolir formalmente a escravidão (escravização humana enquanto atividade econômica), mas não de eliminar seu legado e o racismo que se estruturava e se enraizava na sociedade, agora com novas perspectivas e significados, de modo a marcar com ferro e fogo o inconsciente coletivo e o imaginário social, e criar um senso comum deletério e discriminatório.

Essa é uma marca histórica que jamais deveria fincar na parede da memória.

Os negros não foram incorporados à sociedade, senão marginalizados, excluídos, etiquetados e terminantemente ignorados pelo poder público, período tachado como holocausto do Império, à semelhança do holocausto alemão (período do nazismo na segunda grande guerra mundial) e do holocausto asiático (segunda guerra sino-japonesa).

Não apenas o século 19, mas antes dele e infelizmente além dele a história revela a presença indisfarçável da escravização do ser humano, mais presentemente do negro, do preto, da raça subjugada.

A raça preta passa a ser (mais) um marcador de diferença [2], elemento de desigualdade e inferioridade, fator de discriminação e dominação, circunstância que atrai opressão estatal e naturaliza a invisibilidade social.

Na comemoração do centenário da abolição solene da escravização negra nasce a contemporânea Constituição do Brasil de 5 de outubro de 1988, a qual cria a instituição Defensoria Pública como essencial à Jjustiça e à função jurisdicional do Estado (artigos 5°, LXXIV, e 134) para orientação jurídica e defesa dos necessitados, além de tornar o racismo crime inafiançável, imprescritível e sujeito à pena de reclusão (artigo 5°, XLII), na forma de lei específica (n° 7.716/1989).

A instituição defensorial não nasce no texto constitucional como permanente, expressão e instrumento do regime democrático, com a incumbência fundamental (não restritiva) de defesa dos direitos humanos e dos direitos individuais e coletivos das pessoas em condição de vulnerabilidade, tais como as vítimas de racismo, diretas ou indiretas, com ou sem vitimização criminal (artigo 4°, inciso XVIII, da LC n° 80/1994 — LONDP).

Essa conotação ressignificada e ampliada teve seu registro constitucional após transformações institucionais sensíveis e mudanças da sociedade, de modo a exigir uma instituição autônoma e extrapoder, com missão de defesa e guarda dos vulnerabilizados, de forma não apenas individual, judicializante e contenciosa, burocrática e sem solução efetiva de conflitos e problemas sociais e estruturais.

Passa-se a exigir uma atuação institucional extrajudicial, educativa, transindividual, preventiva e proativa (ARRUDA, 2012), oficiosa e protagonista das soluções sociais estruturais, em cuja missão se encaixa o enfrentamento do racismo, uma vez que atinge diretamente as minorias negras (dado qualitativo), a raça vulnerável, etnias e grupos tradicionais historicamente excluídos e marcados pela violência estatal e condescendência e omissão do povo.

Negros, quilombolas e povos tradicionais são grupos sociais vulneráveis que merecem proteção especial do Estado e, portanto, exigem atuação efetiva, eficiente e oficiosa da Defensoria Pública (artigo 4°, incisos X e XI, da LONDP), uma vez que se caracteriza como instituição ombudsman e guardiã dos vulneráveis.

O racismo estrutural ainda passa por processos de negacionismo e revisionismo histórico, frutos de teorias de senso comum, dada a falta de educação em direitos e qualidade cultural do povo brasileiro.

O Brasil é o país fora do continente africano com maior número de pardos e negros, com percentual populacional superior a 56%, conforme estatística de 2020 do Instituto Brasileiro de Geografia de Estatística (IBGE)-Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua.

Entretanto, dados estatísticos são reveladores ao evidenciar que a população negra não ocupa substancialmente espaços de poder e de decisão, elites econômicas, grupos políticos, meios acadêmicos, culturais e literários, cujo contexto racista coletivo ainda se mantém e sem soluções concretas para mudança do estado atual.

Dentro da própria Defensoria Pública — instituição com incumbência fundamental de defesa dos direitos humanos e promoção da diversidade étnico-racial —, já que se consubstancia como expressão e instrumento do regime democrático, com papéis iluminista e contramajoritário (ARRUDA, 2016), é possível identificar dados preocupantes, embora previsíveis, uma vez que apenas revela um micromundo de repetição de todo o contexto global, e sem ativismo prospectivo.

Na última sexta-feira (21/5) foi publicada a Pesquisa Nacional da Defensoria Pública (2021) [3], fruto de parceria do Colégio Nacional de Defensores Públicos-Gerais (Condege), do Conselho Nacional dos Corregedores-Gerais (CNCG) e da Defensoria Pública da União (DPU).

Os dados são estarrecedores nos critérios racial e socioeconômico, conquanto o critério gênero — outro marcador de diferença relevante — tenha sinalizado mudança pontual e positiva, com a maioria feminina ocupando espaço na instituição (51% na Defensoria Pública, em comparação com 51,9% da população geral).

Foi feita comparação racial (brancos, pardos, pretos e outros) entre a população geral (dados do IBGE — Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral, primeiro trimestre de 2020) e nos membros da Defensoria Pública (defensoras e defensores públicos), com margem de erro de 1,3%.

No resultado total da população geral, estes foram os resultados: brancos (42,7%), pardos (47,2%), pretos (9,2%) e outros (0,9%). A Defensoria Pública apresentou os seguintes dados: brancos (74,0%), pardos (19,3%), pretos (3,0%) e outros (3,7%).

Os brancos tiveram aumento de 32,7%; os pardos, redução de 27,9%; já os negros representam menos de um terço em relação ao quadro populacional nacional.

Como o critério racial caminha paralelamente ao fator socioeconômico, a Pesquisa Nacional (2021) apresentou a seguinte estatística para a classe econômica dos membros anterior à entrada na carreira (margem de erro 1,3%): 29,6% com famílias de quatro a dez salários mínimos; 27,5% de dez a 20 salários mínimos; 26,4% de mais de 20 salários mínimos; 10,3% de dois a quatro salários mínimos; 2,6% de até dois salários mínimos; e 3,6% não quiseram responder.

São dados gritantes de racismo estrutural encontrados dentro da própria instituição incumbida da diversidade racial e responsável por avanços sociais e civilizatórios na superação de obstáculos estruturais, de discriminações e fatores de desequilíbrio histórico-social.

É natural que essa realidade racial desigual seja encontrada em todo o sistema de Justiça, como Ministério Público, Poder Judiciário e advocacia pública, além de polícia, advocacia e demais setores jurídicos, políticos e empresariais.

Sérgio Buarque de Holanda (2014, p. 92), demonstrando as verdadeiras raízes do Brasil, faz a seguinte indagação: “Como esperar transformações profundas em país onde eram mantidos os fundamentos tradicionais da situação que se pretendia ultrapassar?”.

Todos têm (temos) a missão e a responsabilidade de mudar a dinâmica incontestável, mas não inelutável, da violência racial silenciosa (nem sempre) e da mentalidade de casa-grande (HOLANDA, 2014, p. 103).

A transformação deve partir não apenas externamente, mas também internamente. Exige-se um olhar para si, com autocrítica e fomento à mudança estrutural a partir da realidade interna.

Dar o exemplo para construir e fomentar o progresso. Esse é o papel iluminista, contramajoritário e vanguardista da instituição.

O racismo defensorial representa a negação da expressão democrática e a contradição da proteção integral dos necessitados e vulnerabilizados, além da perpetuação da naturalização da violência racial e a permanência do quatro estrutural desigual, sem solidariedade estatal.

* O presente artigo faz parte de uma série de textos publicados a partir da Pesquisa Nacional da Defensoria Pública 2021, realizada por intermédio da cooperação entre os defensores públicos-gerais, corregedores-gerais, defensores públicos e servidores das Defensorias Públicas estaduais, da Defensoria Pública do Distrito Federal e da Defensoria Pública da União, na qual foram coletadas as mais recentes informações sobre o atual estágio de desenvolvimento institucional da assistência jurídica estatal gratuita no Brasil. Os dados completos estão disponíveis em: https://pesquisanacionaldefensoria.com.br/.

Referências bibliográficas
ARRUDA, Ígor Araújo de. A Defensoria Pública no enfrentamento do autoritarismo estrutural. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-03/tribuna-defensoria-defensoria-publica-enfrentamento-autoritarismo-estrutural. Acesso em 19 mai. 2021.

_________________________. Defensoria Pública na concretização de políticas públicas: controle da aparente discricionariedade administrativa governamental. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22066/defensoria-publica-na-concretizacao-de-politicas-publicas. Acesso em 19 mai. 2021.

_________________________. Autonomia pressuposta aos papéis iluminista e contramajoritário da Defensoria Pública. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/autonomia-pressuposta-aos-papeis-iluminista-e-contramajoritario-da-defensoria-publica/. Acesso em 23 mai. 2021.

GOMES, Laurentino. 1889: como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da monarquia e a proclamação da República no Brasil. 1. ed. São Paulo: Globo, 2013.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 27 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

OLIVEIRA, Alfredo Emanuel Farias de; ROCHA, Jorge Bheron; PITTARI, Mariella; MAIA, Maurilio Casas. Teoria Geral da Defensoria Pública. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2020.

WALLIN, Claudia. Um país sem excelências e mordomias. São Paulo: Geração Editorial, 2014.

[1] “Sem embargo, a atuação da Defensoria Pública da União como ombudsman está delimitada pelo escopo de suas finalidades institucionais, que, nos termos do artigo 134 da CF, se ligam especialmente à defesa dos hipossuficientes. Não se trata, portanto, de um ombudsman geral, para todo e qualquer assunto” (parecer do professor constitucionalista Daniel Sarmento solicitado pela ANADEF, em razão das EC n. 74/2013 e 80/2014, encontrado no livro Teoria Geral da Defensoria Pública, p. 124-127).

[2] “O passado do povo brasileiro o condena. Somos herança da escravização, do capitalismo selvagem, do patrimonialismo e da corrupção em suas múltiplas formas, do autoritarismo, mandonismo, patriarcalismo, paternalismo, favoritismo, racismo, sexismo e outras máculas” (ARRUDA, 2020).

[3] Disponível em: https://pesquisanacionaldefensoria.com.br/.

Ígor Araújo de Arruda é defensor público na Defensoria Pública de Pernambuco, autor do livro “Defensor Público Estadual: guia completo sobre como se preparar para a carreira” (JusPodivm, 2019, 2.a ed.), coautor no livro “Teoria Geral da Defensoria Pública” (D’Plácido, 2020), pós-graduado em Direito Público e foi defensor público no Maranhão.

Artigo publicado originalmente no portal do Congresso em Foco.

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Foto destaque: ponte.org