Conflitos violentos na província de Helmand, no Afeganistão, atingem a população
Médicos Sem Fronteiras
Em 28.05.2021
No dia 3 de maio, combates intensos eclodiram em torno da cidade de Lashkar Gah, na província de Helmand, no Afeganistão. O principal hospital de traumas da cidade está atendendo os casos mais críticos, e encaminhando os demais pacientes para o hospital Boost, apoiado por Médicos Sem Fronteiras (MSF). Em uma semana, MSF tratou 93 feridos de guerra, 53 deles apenas entre os dias 3 e 4 de maio, algumas pessoas atingidas por balas e estilhaços. Após uma breve trégua durante o feriado Eid, que marca o fim do Ramadã, os combates foram retomados e MSF está novamente tratando feridos de guerra.
Nos últimos anos, a província de Helmand, no sul do Afeganistão, é uma das áreas mais afetadas pelo conflito, com o agravamento da violência a partir de outubro de 2020. Desde 3 de maio deste ano, muitas famílias começaram a fugir para a cidade de Lashkar Gah, deixando para trás suas casas e seus pertences. A jornada não é fácil. As rotas de acesso às cidades foram bloqueadas, pontes destruídas (segundo o relato de alguns pacientes) e algumas pessoas foram forçadas a fazer viagens mais longas e perigosas.
Diante de tantos riscos, sair em buscar de atendimento básico de saúde ficou mais difícil. Por isso, apesar do fluxo de feridos de guerra, o número geral de pacientes atendidos no hospital apoiado por MSF caiu. Nos primeiros três dias de conflito, as consultas no pronto-socorro e as internações na maternidade caíram 20%.
O hospital Boost é o único hospital para o qual as pessoas podem ser transferidas na província e é vital para aqueles que vivem em Helmand. MSF apoia o pronto-socorro, a unidade cirúrgica, o departamento de internação, a maternidade, a unidade de neonatal, o laboratório e o departamento de radiologia, assim como o departamento de pediatria com 82 leitos. O hospital atende uma população de cerca de 1,3 milhão de pessoas e no ano passado realizou mais de 110 mil consultas, prestou assistência em mais de 17 mil partos e ofereceu mais de 4.900 intervenções cirúrgicas.
Quando o conflito começa, as necessidades de saúde não desaparecem. Mulheres grávidas, crianças desnutridas e outras pessoas ainda precisam de cuidados médicos, mas agora têm muito mais dificuldade de acesso.
A seguir, depoimentos de pacientes, familiares e profissionais, que compartilham suas histórias. Eles descrevem cenas caóticas de pessoas que tentam escapar da violência, mas algumas são feridas no fogo cruzado:
Ahmadullah é tio de Samiullah, de 12 anos, que sofreu um ferimento à bala na cabeça no primeiro dia de combate.
“Ele mora entre o local em que estavam acontecendo o conflito e a cidade, próximo a um ponto de controle. A clínica médica fica longe de sua casa, perto da secretaria do distrito, e naquele dia as ruas estavam cercadas por combatentes. Nenhum homem estava na residência quando Samiullah foi baleado, então as mulheres tiveram que levá-lo para outro vilarejo, cruzando um lago a pé. Quando chegaram ao outro lado, alguém com uma motocicleta levou meu sobrinho para a cidade. Uma viagem de cinco minutos durou duas horas e meia. Os conflitos continuavam na estrada principal. Ninguém podia pegar a rodovia ou as estradas asfaltadas, por isso eles tiveram que atravessar os campos.
Samiullah foi levado à sala de cirurgia para remover estilhaços de bala, que estavam na sua cabeça. Ele está muito bem em comparação a quando chegou. Após receber alta daqui, ele ficará na minha casa, já que precisa voltar ao hospital e, por enquanto, ninguém pode ir onde ele mora.”
Uma mãe com seu filho no pronto-socorro
“Meu filho tem 11 anos e está com diarreia e febre há cerca de 10 dias. Ele está muito fraco e pálido. Os médicos locais não puderam tratá-lo. Saímos de Babaji pela manhã, quando o sol estava nascendo. Tivemos que atravessar o rio e nossa motocicleta parou de funcionar, então a deixamos para trás. Houve tiroteios enquanto viajávamos. Nós o trouxemos aqui, porque pensamos que ele poderia morrer. A viagem demorou cinco ou seis horas em vez de 30 minutos. Havia muitos obstáculos no caminho.”
Shagul está com Maliha, sua neta de 8 anos, que foi baleada no abdômen
“Meu marido levou Maliha e os outros à mesquita para orar e depois quebrar o jejum. Maliha foi baleada na hora da oração, do lado de fora da mesquita. Não tínhamos transporte para trazê-la ao hospital, mas as pessoas nos ajudaram. Um homem trouxe sua motocicleta, mas como o caminho estava bloqueado e eles tiveram que usar uma estrada muito distante para chegar ao hospital.
Seu avô a acompanhou e ela estava sangrando muito. Ele a estava abraçando. Eles chegaram a um pequeno rio que não podiam atravessar. Houve tiroteios na área e havia muitas pessoas na estrada. Eles entraram em outras estradas pequenas, pois não podiam viajar pela estrada principal. Não olhei para o relógio, mas já era tarde da noite quando ela chegou ao hospital. Ficamos preocupados a noite toda e eu vim pela manhã. Não tenho informações sobre ninguém da família, porque o telefone não está funcionando. Estamos muito cansados desta guerra.”
Uma enfermeira de MSF que trabalha na unidade de terapia intensiva neonatal
“Nossa casa é em Bolan, e ontem os combates começaram em nosso vilarejo. As pessoas choravam e gritavam, todos estavam com medo. Pessoas que vinham de mais longe chegaram correndo, sem calçados, sem seus hijabs, sem nada. E homens armados entraram nas casas. Mesmo em um filme, não podemos encontrar nada tão perigoso quanto isto. Uma bomba caiu em nossa casa. Um dos meus primos morreu e outro ficou ferido. Eles estavam fora do imóvel no momento. Meu pai e meu irmão os levaram a um dos hospitais da cidade para tratamento.
Ontem à noite fui a Bolan buscar minha família, meus filhos, e trazê-los aqui para uma acomodação que aluguei, um lugar seguro em Lashkar Gah. Houve tiros por toda parte e as balas entraram em nossa casa. Eu tive que tirá-los de lá. Graças a Deus temos dinheiro suficiente para administrar essa situação, mas sei que para outras pessoas as coisas estão muito ruins.
Meu pai tem uma loja em Bolan. Durante a noite ele, foi até nossa casa e pegou todos os nossos pertences, guardando tudo em seu estabelecimento. De manhã, quando meu pai voltou para a loja, ela havia sido arrombada e tudo foi perdido. Cada coisa importante que tiramos de nossa casa, tudo se foi. Estávamos em um lugar seguro e de repente isso aconteceu conosco. Imagine aquelas pessoas que estão sempre vivendo em meio à guerra. Aqueles que passam meses e meses nessas situações. Devemos pensar em suas vidas. Eles não têm nada para comer. Eles não têm nada para tratar suas doenças ou cuidar de seus filhos. Perdi irmãos, irmãs, tios, primos e vizinhos ao longo dos anos. Eles perderam muitos e alguns perderam tudo.”
Foto destaque: Andrew Quilty