Para “quem” serve a abordagem policial?

Por

Vivian Peres da Silva e Lívia Bastos Lages*

Em 29.05.2021

Em São Paulo, de acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública, durante o ano de 2020, das 11.961.706 abordagens e revistas pessoais realizadas pela polícia, 104.081 (0,87%) resultaram em prisão em flagrante.  Os dados disponíveis do primeiro trimestre do ano de 2021 vão no mesmo sentido: das quase 3 milhões de abordagens, pouco menos de 28 mil (0,95%) resultaram em prisão em flagrante. Ou seja, em menos de 1% dos casos os agentes de segurança pública, notadamente a polícia militar, encontraram algo de ilícito em poder das pessoas abordadas, que pudesse justificar uma prisão em flagrante pela prática de algum crime.

Mesmo que o Código de Processo Penal brasileiro considere lícita a revista pessoal sem a necessidade de mandado da autoridade judiciária, o seu artigo 240, parágrafo 2º, estabelece que essa abordagem só pode ser realizada quando existir uma fundada suspeita de que o indivíduo esteja envolvido com alguma prática criminosa. A legislação, no entanto, não especifica o que se considera fundada suspeita, atribuindo ao conceito um alto grau de subjetividade e deixando, no limite, a critério da autoridade policial a forma de abordagem e a busca pessoal em dar concretude ao subjetivismo do termo. Na prática,  estudo sobre a Desigualdade Racial e Segurança Pública em São Paulo, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Jacqueline Sinhoretto, aponta que a vigilância das forças de segurança opera de forma racializada, já que a taxa pessoas negras presas em flagrante é de 35 para cada 100 mil habitantes, enquanto de pessoas brancas é de 14 para cada 100 mil habitantes.

Considerando esse cenário, bem como a falta de dados e informações claras sobre as justificativas para as abordagens policiais realizadas e sobre o perfil das pessoas abordadas, o IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e o Data Labe lançaram a campanha #PorQueEu?, com o objetivo de mapear e registrar as experiências das pessoas que passam por abordagens policiais, por meio do preenchimento de um questionário, anônimo, que reúne perguntas sobre como, quando, onde e por que essas abordagens ocorrem cotidiana e indiscriminadamente. Nessa mesma linha, a coluna desta semana busca debater a forma de atuação dos agentes de segurança pública ao realizarem abordagens pessoais; sobretudo no que consideram fundada suspeita, já que, em mais 99% dos casos, essa suspeita não é confirmada.

Do que se trata a fundada suspeita para a abordagem?

De pronto, esses dados nos levam a questionar a eficiência da atividade policial. Muitas abordagens, mas “poucos” indiciamentos de pessoas que, de fato, estejam envolvidas com atividades criminosas.  Porém, a interpretação desses números exige, também, para além do questionamento sobre a falta de evidências, o questionamento sobre o que a polícia tem considerado “fundada suspeita” de envolvimento de indivíduos com o crime. Se as abordagens não têm sido eficientes para encontrar objetos relacionados à criminalidade, a atividade policial tem funcionado, e muito bem, para a vigilância da classe de indivíduos tida como “socialmente perigosa”: homens, jovens, negros e moradores de periferia.  Só que, como os próprios dados evidenciam, dessa classe vigiada, menos de 1% parece de fato ter qualquer relação com o crime.

Em sua tese de doutorado, Marcelo Semer faz uma análise de 800 sentenças, de oito Estados brasileiros, proferidas em casos de tráfico de drogas. Além do trabalho lançar luz ao viés racial que pauta a atuação das polícias – sobretudo em casos de tráfico de drogas, cujos processos se iniciam, majoritariamente, a partir de prisões em flagrante – ele traz também justificativas apresentadas por policiais e mencionadas nas sentenças analisadas, sobre o que teria sido considerada uma atitude suspeita ensejando a abordagem que deu origem à prisão. A título de exemplo, aqui utilizado para reforçar a afirmação de subjetividade do conceito de fundada suspeita, são mencionadas ações absolutamente corriqueiras como correr, acelerar o passo, parecer nervoso ou assustado, olhar desconfiado, andar ao ver a polícia, ficar parado no meio da rua, estar sozinho na rua, estar próximo de um casal, estar mexendo em uma moita, contar dinheiro, carregar uma sacola, parecer estar escondido e até estar bem vestido, destoando de pessoas em situação  de rua.

As abordagens policiais, longe de serem um procedimento padrão em que qualquer cidadão está sujeito, são racializadas e filtradas por gênero, território, idade e classe social.  Ramos e Musumeci, a partir da pesquisa “Elemento Suspeito”, do Centro de Estudos em Segurança e Cidadania (CESEC) realizada na cidade do Rio de Janeiro, apontam que a abordagem pela polícia na rua, andando a pé e/ou em transporte coletivo, atinge os negros de  forma desproporcional em relação aos brancos, bem como incidem sobremaneira em jovens de baixa escolaridade e são realizadas longe da zona sul ou nas áreas nobres das cidades. Na mesma pesquisa, as autoras entrevistaram policiais militares e apontaram para a ausência de um discurso articulado sobre os critérios utilizados para construir a suspeita, sendo predominante o levantamento de fatores subjetivos ou intuitivos para a realização da abordagem. Infere-se disso, então, a inexistência de um protocolo claro ou de limites institucionais que pautem a atuação da polícia, de modo que a “atitude suspeita” é construída a partir de estereótipos racializados sobre quem é ou não potencialmente criminoso.

Essa pesquisa está sendo reelaborada com vistas a entender o que mudou desde a sua primeira edição, com enfoque na relação entre racismo e policiamento. A sua  segunda edição foi lançada no mesmo momento de casos como o do adolescente João Pedro, morto em operação policial em São Gonçalo, e de João Alberto, espancado e morto por seguranças do Carrefour, que denotam como a escolha de quem será abordado e a forma de abordagem permanecem atreladas à sujeição criminal dos indivíduos,  um processo de criminalização de sujeitos e não de suas ações. Ou seja, a identificação de “prováveis criminosos” não se baseia na investigação de condutas tipificadas na lei como crime, mas de indivíduos socialmente associados a essas condutas.

Além de ter alvo preferencial, Ramos e Musumeci apontam que a atuação policial é mais violenta quando se trata de homens, jovens, negros e pobres. Quando abordados, são proporcionalmente mais intimidados e coagidos, além de sofrerem mais violência física e psicológica, do que a população branca. Desse modo, o abuso de poder perpassa a abordagem policial, que representa uma demonstração do uso da força estatal contra parte da população.  Assim, num ciclo vicioso, ao abordar sistematicamente as mesmas pessoas, a polícia contribui para o processo de sujeição criminal, que associa determinados perfis de pessoas à criminalidade. Nesse quadro, aqueles que são cotidianamente abordados, vistos como criminosos, tornam-se candidatos às futuras ações policiais, inclusive letais, em que todas e quaisquer práticas violentas são justificadas por serem esses alvos, nas palavras do vice-presidente da República, Hamilton Mourão – comentando uma das maiores chacinas ocorridas no Rio de Janeiro, no Jacarezinho, no último dia 06 de maio -,  “tudo bandido”.

Como a justiça legitima as práticas policiais?

Essa seletividade da abordagem policial, além de ser um abuso de poder legitimado socialmente, traz séria consequência: alimenta diariamente a justiça criminal com casos de flagrante delito fruto da super vigilância de um mesmo grupo de pessoas. Quando em uma abordagem é encontrado algo de ilícito com a pessoa e o caso resulta em um processo criminal, o Judiciário, que teria o dever de preencher a lacuna do conceito de fundada suspeita, zelando pela proteção dos direitos e garantias fundamentais (sobretudo, nesse caso, pelo princípio constitucional da presunção de inocência), acaba por chancelar a ação policial, na medida em que deixa de questionar a justificativa que tenha sido dada para a abordagem, legitimando, portanto, atuações muitas vezes discriminatórias.

Ao dar continuidade a esses casos no fluxo do Sistema de Justiça Criminal, sem qualquer questionamento sobre o que se entendeu por “fundada suspeita”, a Justiça chancela a seletividade da política de segurança pública. As prisões brasileiras têm também tipos penais preferenciais: roubo, furto, tráfico de drogas e receptação (INFOPEN, 2019), são os crimes mais frequentemente atribuídos à população encarcerada; os chamados “crimes de rua”, normalmente não violentos,com exceção do roubo, e que rotineiramente são flagrados pela polícia sem demandarem maiores investigações. Assim, a Justiça submete os homens, jovens e negros, presos nas “poucas” abordagens frutíferas do policiamento ostensivo, à privação da liberdade, seja pela condenação ou pela imposição de prisão provisória.

É justamente essa carência de investigação criminal que possibilita aos juízes atribuir à palavra do policial uma relevância ímpar, muitas vezes suficiente para embasar uma condenação. Em pesquisa realizada pelo IDDD em parceria com Organizações e Grupos de Pesquisas de Universidades (entre os quais o CRISP) em 13 cidades de nove estados do país foram acompanhadas mais de duas mil e quinhentas audiências de custódia, que resultaram na prisão preventiva de 57% das pessoas. Dos casos acompanhados, 55,6% tinham como únicas testemunhas os próprios policiais que haviam efetuado a prisão em flagrante; esse número foi de 90% quando o crime que ensejou o flagrante foi o de tráfico de drogas.

Quando olhamos para esses dados de forma encadeada – número de abordagens, número de prisões em flagrante, forma mais comum de início de um processo criminal (a prisão em flagrante), perfil majoritário da população encarcerada, falta de investigação e atribuição de grande peso à palavra da polícia – fica evidente a existência da mencionada super vigilância de uma camada específica da população. E as condenações provenientes dos “casos comuns” da justiça criminal, abrem as portas para um futuro quase certo de criminalização contínua dessa mesma população, na medida em que a marca deixada por elas acarreta a eterna suspeição das pessoas que passam pelo Sistema de Justiça Criminal. Ao entrar para a lista de antecedentes criminais, essas condenações legitimam novas abordagens, dando continuidade a um ciclo vicioso de reafirmação de poder e de “lugares” na distribuição socioespacial da nossa sociedade.

Afinal, para que(m) serve a abordagem policial?

Ao chamar a atenção para as abordagens policiais, o objetivo deste texto foi problematizar o que tem sido utilizado como  critério de “fundada suspeita” pelos policiais. As pesquisas já realizadas apontam que, mais do que na suspeita de crimes, as abordagens têm sido pautadas em estereótipos racializados sobre quem são os criminosos. Além de seletivas, essas abordagens, muitas das vezes, são violentas e abusivas e legitimadas pela crença de que, contra o crime ou, principalmente, contra o criminoso, vale tudo. Respondendo à pergunta inicial deste texto, as abordagens policiais, longe de frear a criminalidade, têm servido para controlar um determinado grupo de pessoas, associado à delinquência e, por isso, visto como a “classe perigosa”.

Assim, esse modus operandi policial, em que vale tudo contra a “classe perigosa”, não tem se mostrado efetivo em termos de política de segurança pública. Das abordagens, menos de 1% encontra respaldo a partir da apreensão de objetos ilícitos. Mesmo nesses poucos casos, a Justiça Criminal raramente questiona os critérios utilizados pela polícia e, com isso, dá continuidade à superlotação das prisões brasileiras com este mesmo perfil. Dessa forma, a Justiça chancela uma política de segurança pública baseada em estereótipos sociais e não em diretrizes claras e protocolos de atuação policial que respeitem direitos e garantias fundamentais.

Para interferir neste cenário, o primeiro passo é entender melhor as circunstâncias em que ocorrem as abordagens policiais, escutando quem mais sabe sobre elas: quem as sofre. Assim, chamamos a todos que já tenham passado pela experiência da abordagem para preencher o formulário construído pelo IDDD e o Data_Labe. Esperamos, assim, qualificar o debate acerca do tema e contribuir para a proposição de políticas no âmbito da segurança pública baseadas em evidências.

*Vivian Peres da Silva é advogada e Assessora de Projetos no Instituto de Defesa do Direito a Defesa (IDDD).

*Lívia Bastos Lages é doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora do Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública (CRISP).

Artigo publicado originalmente no portal Justificando.

Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.