Pazuello desafia a democracia

Por

Ayrton Maciel*

Em 27.05.2021

Um general do Exército participa de ato político, por decisão voluntária e com conhecimento das regras do estatuto da corporação e da Constituição, ambas impeditivas para manifestação política de militar da ativa. General de divisão, Eduardo Pazuello – ao comparecer a ato com o presidente Jair Bolsonaro, no Rio de Janeiro – tinha consciência das transgressões, desafiou seus comandantes e desprezou as instituições do país. Mais grave que o apoio político ao presidente, o ato defendia um golpe na democracia, fechando o STF e o Congresso e implantando uma ditadura com Bolsonaro no comando. Uma manifestação reincidente no menosprezo ao poder civil.

As Forças Armadas são instituições permanentes, pertencem ao Estado e devem representar o povo brasileiro em sua integralidade, não podendo manifestar opção política. Pazuello não é inocente. Nem pelo ato, nem por desconhecimento. O general quis testar as reações ao gesto, desafiando as punições. Por motivações ideológicas – pois compartilha as ideias de Bolsonaro – e objetivos eleitorais, na medida em que o presidente é candidato à reeleição, em 2022, e na possibilidade dele mesmo, Pazuello, ter aspirações políticas. Ato com agravante: o general desdenhou do uso de máscara e do distanciamento social numa pandemia, após se dizer a favor das regras ao depor na CPI da Covid.

É possível constatar que o episódio Pazuello – de desprestigio das instituições e menosprezo da democracia – não está restrito a um ato isolado em um momento de radicalização de uma sociedade profundamente dividida politicamente. O desdém de Pazuello é uma reincidência de atitudes de generais, coronéis e patentes inferiores desde a redemocratização em 1985. Parcela do corpo de generalato não aceitou o fim da ditadura de 64, não aceita até hoje, e tem dificuldade de conviver em um regime democrático de sociedade. Parcela que não aceita a supremacia da sociedade civil.

Há vários episódios em que esses militares, direta ou via insinuações, colocaram ameaças aos governos nestes 36 anos, por inúmeros motivos e desejos. Esses militares, consciente e propositalmente, pois têm formação suficiente para discernir valores, invertem os papéis: dão a primazia à sociedade militar e tratam a sociedade civil como apêndice, por isso entendem-se como tutores dos civis. Estão sempre a conspirar pela tutela da nação. Essa imagem, preservada por generais e coronéis, é muito própria do golpe de 64, embora na história republicana tenham ocorrido rompimentos golpistas, porém nada que se enraizasse como doutrina extremista nas corporações.

O episódio mais grotesco dessa inversão de valores foi protagonizado pelo então capitão Jair Bolsonaro, entre 1986 e 1987, por insatisfação com os soldos militares. Planejou inclusive colocar bombas em quartéis para acirrar a tropa contra superiores, a sociedade e o governo civil de José Sarney (PMDB). Antes, em 1981, ocorrera o atentado do Rio Centro, que visou interromper os planos de reabertura e voltar a fechar o regime de 64. Pronunciamentos de oficiais militares contra a revisão da Anistia de 1979, as investigações da Comissão da Verdade de 2012, os julgamentos do STF nos escândalos de corrupção da última década e, agora, simpáticos à ilusão de uma nova ditadura são destaques no rol de ameaças militares à sociedade civil.

Os alvos são sempre o Estado de Direito e a democracia. O extremismo ideológico é o pano de fundo dessas iniciativas: uma influência fascista na formação e o anticomunismo da visão delirante de ameaça permanente ao país. Provavelmente, o fato da ditadura de 64 ter caído sob uma anistia geral, sem punição a agentes do Estado que cometeram crimes contra direitos humanos e a humanidade – diferentemente do que aconteceu na Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai -, tenha estimulado as iniciativas ameaçadoras de militares ao longo deste período democrático.

Para deter e cessar esses frequentes desvios de finalidade, cabe ao Congresso Nacional atualizar as legislações e impedir os abusos e brechas em estatutos que permitam interpretações distorcidas. Há poucos meses, o STF decidiu por uma definição fundamental nesse sentido: a Corte disse que, à luz da Constituição de 1988, as Forças Armadas não são um poder moderador. Esse papel é exclusivo do Supremo Tribunal Federal. As FFAA são instituições de proteção da segurança e integridade territorial do país. A decisão pôs por terra a alegação de “poder moderador” de quem gostaria de usá-la como justificativa para insurreições e insubordinações golpistas.

É necessário, também, contra ameaças e conspirações militares, que os estatutos das corporações sejam atualizados. Instituições armadas devem contar com extremo rigor disciplinar e clara percepção de seus papéis perante a sociedade civil. Nesse sentido, não devem ser debatidas e escritas exclusivamente por seus integrantes. No caso específico das polícias militares estaduais, o Brasil precisa da reformulação das corporações de segurança pública. Policiais militares não devem ser orientados para a guerra. O país precisa desmilitarizar a sua formação. O Brasil necessita de começar a discutir a transformação das polícias em corporação única, parte ostensiva, parte Judiciária.

Há no Congresso projetos de unificação. A proposta não é nova. Pela Constituição, as polícias militares são “forças auxiliares” e “reserva” do Exército. Formações ideológica e operacional contemplam o preparo para a guerra. O grave é que não há inimigo interno e sim o dever de servir à proteção da população. A sociedade civil não é uma adversária, como comumente são tratadas as comunidades pobres. O sentimento bélico das corporações estaduais tornou-se incendiário a partir de 2018, com Bolsonaro, que assumiu os compromissos de priorização, privilégios e tratamento semelhante ao das FFAA. Os policiais vivem a expectativa desses compromissos. Exemplo é a volta ao debate de projeto que cria a patente de general e retira a autoridade dos governadores sobre as PMs.

O ex-ministro da Saúde, Pazuello, não estava sozinho, domingo passado (23). Além dos mil policiais militares de corporações de todos país, segundo noticiou-se, outros estavam em pensamento na manifestação pró-Bolsonaro, desrespeitando estatutos, decretos, a lucidez e, em um momento de expansão de uma pandemia, jogando no lixo as regras sanitárias para proteção da população.

*Ayrton Maciel é jornalista. Trabalhou no Dario de Pernambuco, Jornal do Commercio e nas rádios Jornal, Olinda e Tamandaré. Ganhador do Prêmio Esso Regional Nordeste de 1991.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
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