Infâncias negras, racismo e trabalho infantil
Manuela Hermes de Lima*
Em 19.06.2021
“Trabalho infantil é um crime
E tem cor e endereço (…)
Prioridade nossa
É assegurar que cresçam e floresçam (…)
Merecem o mundo como um jardim
E não como uma cela”
Emicida & Drik Barbosa – Sementes
O trabalho infantil marca a pessoa adulta. Em nossa casa, recordo dos relatos de meus pais sobre o trabalho a que foram submetidos ainda na infância, e da experiência de meu pai, homem preto, que, na infância pobre em Salvador, foi compelido ao trabalho precoce, encontrando na Educação a possibilidade de mobilidade num contexto adverso, graduando-se em Direito na UFBA em 1972 e, posteriormente, ingressando na Magistratura Trabalhista em 1991, rompendo o ciclo de trabalho prematuro às gerações posteriores de filhos(as) e netos(as).
Em 12 de junho, Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil instituído pela OIT, o mundo se mobilizou contra o trabalho precoce na infância e adolescência. Em razão do contingente de crianças negras nessa condição no país, traçamos algumas reflexões sobre essa questão desafiadora. Não se trata de um recorte temático, mas um ponto central que requer observação aliada à raça, por serem as crianças negras, as mais afetadas pelo trabalho infantil.
O ano de 2021 foi considerado pela Assembleia Geral da ONU como o Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil. Dados contidos no Relatório “Trabalho Infantil: estimativas globais 2020, tendências e caminhos a seguir”, elaborado pela OIT e UNICEF apontam uma triste realidade mundial, com 160 milhões de crianças em trabalho prematuro e panorama preocupante, sinalizando que a partir de 2016 houve um acréscimo do trabalho precoce, contabilizando 8,4 milhões de crianças, números que tendem a aumentar até o final de 2021, no curso da pandemia.
Considera-se trabalho infantil, segundo orientação da OIT, qualquer atividade que prive a criança e o adolescente de suas dignidades, infâncias, comprometendo seus desenvolvimentos físicos e mentais, acarretando também, prejuízos na vida escolar, total ou parcialmente, com abandono da escola.
Dessa forma, crianças e adolescentes têm assegurado pelo ordenamento legal brasileiro a proteção integral, atenção prioritária no seu desenvolvimento, estabelecendo a responsabilidade solidária da família, da sociedade e do Estado, com vistas a assegurar a efetivação dos direitos e garantias fundamentais (artigo 227 da CF de 1988 e ECA, lei nº 8.069/1990). Nesse sentido, a Convenção nº 182, elenca as piores formas de trabalho infantil e ações efetivas para alcance de sua eliminação, e a de nº 138, estabelece a idade mínima ao trabalho, definida no país mediante art. 7o, XXXIII, CF/88.
Quando se menciona o trabalho infantil no Brasil, as crianças negras figuram, em sua quase inteireza, nessa situação, cujas causas remontam do período histórico da escravização de pessoas negras, do denominado processo inconcluso da abolição, que impeliu a massa de pessoas negras libertas a vagar, condenando “os africanos livres e seus descendentes a um novo estado econômico, político e cultural de escravidão em liberdade” (NASCIMENTO, 2016, p.81).
Sobre esse período, a pesquisadora Raíssa Roussenq pontua que a Lei n. 2040, de 28/09/1871, conhecida como Lei do Ventre Livre, apesar de declarar “livres todos os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir da sua publicação”, fez-se acompanhar de inúmeras condicionantes, como “manter as crianças em poder dos senhores de suas mães até os 08 anos, entregá-los ao Estado e receber uma indenização ou utilizar os serviços até os 21 anos” (ALVES, 2019, p.36).
Dados coletados em 2019 pelo IBGE, com amparo na PNAD, revelam que, antes da pandemia, 1.758 milhão de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos estavam submetidas ao trabalho infantil, sendo 706 mil em atividades compreendidas dentre as piores formas de trabalho prematuro, apurando que 66,1% das crianças em situação de trabalho precoce eram pretas ou pardas.
O relatório divulgado neste mês de junho de 2021 pela OIT e UNICEF, Child Labour: global estimates 2020, trends and the road forward, também faz importante alerta para estagnação, pela primeira vez em 20 anos, dos resultados para erradicação do trabalho infantil no mundo
O racismo que se estruturou na sociedade brasileira fez com que se naturalizasse o trabalho infantil de crianças negras e pobres, constituindo estas, o seu maior contingente. Tal como o mito da democracia racial, outras tantas narrativas surgiram em torno do trabalho na infância, como: “o trabalho não mata”, “melhor trabalhar a estar na marginalidade” e “trabalhar para ajudar a família”. Algumas dessas lendas permeiam as histórias reproduzidas por inúmeras pessoas que acreditam no trabalho precoce, uma falsa solução para infância.
As versões para o indefensável trabalho prematuro guardam naqueles(as) que resistem ao seu combate e erradicação as marcas de uma sociedade racista. Há também, uma flagrante ausência perceptiva de que trabalhar na infância compromete o desenvolvimento integral e saudável da criança, especialmente as negras que não são vistas pela sociedade como sujeitos de direito, com absoluta negação ao seu direito de brincar, estudar e de ser criança, estendendo a essas crianças e adolescentes negros(as) a prioridade e proteção integral contemplados no ordenamento legal. O racismo que marca a sociedade brasileira impõe à criança negra a supressão de sua infância.
Incluído na Lista TIP (das piores formas de trabalho infantil) o trabalho doméstico infantil, invisível por se desenvolver no âmbito residencial, alcança 94,2% de crianças e adolescentes meninas, sendo 73,4% negras. Esse alto índice guarda fortes reminiscências do período escravocrata e retira dessas meninas a dignidade, resultando violações graves, além da exposição aos mais diversos riscos, como: jornadas extenuantes, comprometimento da saúde, abusos psicológicos e violência sexual. Assim, eliminar as piores formas de trabalho infantil consta como meta 8.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, e deve constituir compromisso do Estado e toda sociedade brasileira.
As desigualdades e a condição de pobreza empurram as crianças negras ao trabalho precoce, refletindo as condições de desequilíbrio a que está submetida a população negra, quando comparada com a parcela de pessoas brancas. Os efeitos perversos do racismo no Brasil são sentidos pela criança negra desde o ventre da mãe, devido as dificuldades de acesso da mulher negra às políticas públicas na gestação, sendo as maiores vítimas de violência obstétrica no pré-natal e parto, com “taxa de mortalidade de crianças negras de até 1 ano de 22,5% comparadas às crianças brancas”.
Para Mbembe, “a função do racismo é regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado” (MBEMBE, 2016, p. 128), estando a criança e o adolescente que trabalham prematuramente sujeitos aos riscos de acidentes e morte.
Estudo recente aponta que 45,4% de crianças de 0 a 14 anos vivem em situação de pobreza (condição da maioria de crianças negras no país) e 1.768.476 milhão de crianças estão em situação de trabalho infantil, correspondendo a 4,6% da população nesta faixa etária.
Combater e erradicar o trabalho infantil no país passa, inclusive, por enfrentar todas as mazelas do racismo e seus impactos na vida da população negra, que se encontra, em maior percentual no país, em situação de vulnerabilidade social, com menor renda.
Na assertiva de que o Brasil foi construído pelas mãos do povo negro, acrescento que, também, por mãos negras infantis, que perderam suas existências e infâncias no trabalho forçado, ao curso desses 400 anos. É preciso dar um basta ao trabalho infantil, à exploração e morte de nossas crianças e jovens negros(as) e ao comprometimento do desenvolvimento pleno das infâncias negras, exigindo a elaboração e efetivação de políticas públicas direcionadas à infância e a juventude negra, a priorização de recursos aos programas de transferência de renda, implementação de educação, atenção às famílias e sensibilização da sociedade, colaborando para o fortalecimento da rede de proteção combatente ao trabalho infantil. Por infâncias negras com dignidade, com direito a viver e ser criança, diga não ao trabalho infantil!
*Manuela Hermes de Lima, juíza do Trabalho.
Artigo publicado originalmente no portal Justificando.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
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