Uma morte a cada quatro dias: povo Xikrin é o mais afetado pela Covid-19 no Pará
Naira Hofmeister, Fernanda Wenzel | Fotos: José Cícero da Silva | Infográficos: Larissa Fernandes
Em 20.06.2020
“Nas aldeias tem choro dia e noite e as pessoas estão desesperadas.” É assim que o jovem Yan Xikrin (24 anos), filho de um dos caciques da Terra Indígena (TI) Xikrin do Cateté, descreve a situação de seu povo depois que sete óbitos por Covid-19 foram registrados nas três últimas semanas. Desde o dia 22 de maio, quando o guerreiro Bemok Xikrin (72 anos) morreu sem ar em um leito de hospital em Marabá, os Xikrin não passaram mais de sete dias sem lamentar a perda de algum parente, como eles costumam chamar os seus. A morte mais recente aconteceu na manhã do dia 10 de junho, quando o velho Topan Xikrin entrou para as estatísticas.
“Nós estamos com muito medo. Na minha família, sete pessoas já estão falecidas dessa doença”, explica Bekroti Xikrin, presidente do instituto que representa as cinco aldeias da etnia, que ocupa uma área de 439 mil hectares no sudoeste do Pará, a mais de 400 quilômetros de Marabá.
Além de Bemok, outros três guerreiros idosos faleceram: Teptap, Ikrore e Anoyre. Eram figuras importantes para a etnia, como denota o título que possuíam. Guerreiros são os que enfrentam provas de resistência e demonstram conhecimento de suas tradições culturais. Nas aldeias se fala muito pouco português e o respeito aos velhos é levado a sério: eles são os guardiões da memória indígena.
Por essas razões, a morte mais sentida até agora foi a de Bep Karoti (63 anos), cacique da aldeia Pokro e referência para toda a população da terra indígena. “Era uma liderança muito forte física e espiritualmente. Ele já reinava quando outros caciques de hoje eram crianças”, descreve Patrícia Alves Pereira, uma não indígena que assessora o instituto.
O sétimo óbito foi Irenhoti, mulher de 21 anos sobre a qual pouco se sabe. Botxiê Xikrin, o centenário ancião e autoridade máxima da etnia, também se contaminou e foi hospitalizado. Pelo menos 270 indígenas já testaram positivo para o novo coronavírus, segundo Yan Xikrin.
Os Xikrin não são o único povo a sofrer com a pandemia. Dados da Fiocruz mostram que a população indígena é a que mais morre entre doentes que procuram hospitais: 48% contra 28% dos brancos, 36% dos pretos e 40% dos pardos. A ciência já sabe que a vulnerabilidade dos povos nativos aos vírus é alta em razão do contato mais recente. Somam-se a isso a distância que precisam percorrer para encontrar atendimento médico de média e alta complexidade e as dificuldades de estabelecer um sistema de isolamento em culturas nas quais o compartilhamento de espaço é a regra. Até o dia 14 de junho, 249 indígenas haviam morrido com o novo coronavírus no Brasil, segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Oficialmente, a Sesai, vinculada ao Ministério da Saúde, registra um número bem menor de óbitos: 103.
Mas a TI Xikrin do Cateté tem uma condição ainda mais preocupante: lá, foi registrado o segundo maior número de mortes entre todas as 65 áreas indígenas identificadas pela Funai no Pará, embora a população total da área demarcada não chegue a 2 mil pessoas. No Brasil, apenas quatro de 78 etnias registraram mais óbitos por Covid-19 do que os Xikrin, segundo os dados mais recentes da Coiab.
Larissa Fernandes/Agência Pública
A incidência da doença entre os Xikrin é muito maior do que nos municípios ao redor da terra indígena e mais de 40 vezes maior do que no Brasil, considerando-se os dados populacionais de 2010, os últimos disponíveis, e as informações sobre contaminados no site Brasil.io em 10 de junho. Também é alta a diferença de letalidade entre quem contrai a doença dentro e quem é acometido fora da área demarcada.
Mineração é fator de vulnerabilidade
Grande parte da população Xikrin possui fatores de risco para Covid-19, afetados por diabetes, pressão alta e doenças cardíacas, fenômeno que não ocorre com outros indígenas da região. “Os técnicos de enfermagem da Sesai indagam-me por que os Xikrin da Terra Indígena Cateté apresentam tantas doenças, ao contrário dos Suruí e Parakanã”, escreveu o médico endocrinologista João Paulo Botelho Vieira Filho em um relatório de março de 2020. Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele atende a saúde dos Xikrin há décadas, desde que aplicou as primeiras vacinas nesse povo, quase dizimado, entre 1950 e 1970, pelas doenças contraídas no contato com os brancos: no pior momento, a população total eram exatos 92 indivíduos.
O problema, alerta o médico, é a contaminação das águas do rio Cateté. “Atualmente suponho que os causadores das doenças dos Xikrin possam ser os metais pesados”, completa Vieira Filho. A hipótese foi confirmada em março deste ano por um laudo da Universidade Federal do Pará e entregue ao Ministério Público Federal. “Não se tem mais dúvidas quanto a responsabilidade do empreendimento Onça Puma na contribuição para a contaminação do Rio Cateté”, escreveu o engenheiro Reginaldo Saboia de Paiva, após uma expedição à TI para colher amostras de água. Suas análises já haviam comprovado anteriormente a presença de chumbo, ferro, cobre, níquel e cromo em teores acima das quantidades admitidas no Rio Cateté, usado pelos indígenas para tomar banho, cozinhar e pescar – como a Agência Pública relatou em 2017.
“Os Xikrin estão se alimentando com mandiocas, macaxeiras, batatas-doces, em processo de amolecimento dessas raízes nos rios Cateté e Itacaiúnas, com altos níveis de chumbo e cádmio. Metais terríveis pelas consequências no cérebro, rins, ossos e demais órgãos vitais”, alerta o médico em seu texto recente.
Ubirajara Sompré, indígena do povo Gavião que trabalha como apoiador técnico da Sesai, chama atenção para os riscos psicológicos que a ameaça traz. “Já tem muita pressão pela poluição do minério, pelo desmatamento. Agora junta essa situação da pandemia, fica muito complicado. Se você pega um coronavírus desses, com a água contaminada, a imunidade com certeza é muita baixa”, explica.
A preocupação com a relação entre a atividade mineradora e a vulnerabilidade dos povos indígenas à Covid-19 levou a Associação Brasileira de Antropologia a emitir uma nota, em 11 de maio, condenando a contaminação dos rios, “um quadro que exige medidas urgentes, em particular dos Ministérios da Saúde (MS), do Meio Ambiente (MMA) e da Justiça e Segurança Pública (MJSP)”. “Em um contexto epidêmico de Covid-19, estes problemas ampliam os riscos desta população indígena. Ela fica ainda mais propensa a desenvolver casos de complicação que podem desembocar em óbito”, afirmam os antropólogos.
A Vale nega que seja a origem da contaminação, mas o caso ainda está sendo discutido na Justiça Federal. “A Vale reforça que sete laudos elaborados por peritos judiciais (engenharia metalúrgica, biólogo/ictiofauna, sociológico, agronômico, engenharia florestal, engenharia civil e geologia) nomeados pelo Juiz Federal de Redenção, concluíram que a operação do empreendimento de Onça Puma não é a fonte da contaminação do Rio Cateté, e sua regularidade operacional.” Porém, em seu mais recente Formulário de Referência, entregue à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em 29 de maio, a empresa classifica o processo como uma “perda possível, haja vista ainda estar em fase de instrução, sendo que a perícia técnica requerida pelas partes ainda não foi concluída”.
Desde 2015, a Justiça determinou em três oportunidades a suspensão das atividades de Onça Puma – a última ocorreu em fevereiro do ano passado e foi desrespeitada pela Vale, que só cumpriu plenamente a determinação a partir de junho. Três meses depois, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, autorizou a retomada das operações da usina de níquel.
Além de Onça Puma, outras duas operações da Vale preocupam os Xikrin: eles ingressaram na Justiça contra irregularidades no licenciamento da mina de Salobo, maior projeto de cobre da Vale e acusam problemas no megacomplexo S11D, a maior mina de ferro do mundo, que explora o minério no subsolo da Floresta Nacional dos Carajás.
Municípios próximos estão em colapso
A nota da Associação Brasileira de Antropologia chama atenção para o fato de as águas do Cateté alimentarem a calha do rio Tocantins, “um dos principais cursos d’água da Amazônia Oriental brasileira, e fonte de abastecimento de água da população ribeirinha de vários núcleos urbanos”. Por isso, observa, “o dano ambiental e à saúde humana abarca um território bem mais amplo do que o situado no interior e no entorno imediato do espaço ocupado pela atividade de mineração”.
De fato, na cidade de Parauapebas, onde está parte do território Xikrin, mais de 6 mil pessoas testaram positivo para Covid-19, segundo a Secretaria Estadual de Saúde do Pará, e 98 morreram (o dado consolidado pelo Brasil.io e utilizado nos gráficos acima é menor). A cidade, de 200 mil habitantes, só perde para a capital Belém, situação que preocupa o prefeito Darci Lermen (MDB). Ele afirma que a maioria dos casos registrados na cidade é de trabalhadores da Vale S.A. e se diz preocupado com a aglomeração provocada pela atividade.
“O governo federal determinou que a mineração é atividade essencial, por isso não tive poder de parar Salobo no lockdown. E grande parte dos casos vem de lá. Os trabalhadores viajam quase duas horas de ônibus até a mina, e são milhares indo e vindo todo dia. É natural que esse vírus se propague com muita facilidade”, lamenta.
Em resposta, a Vale S.A. informa que “está trabalhando com um contingente mínimo de pessoas” em suas operações e adotou, nos casos possíveis, “home office”, já em 16 de março. Trabalhadores com idades acima de 60 anos ou com fatores de risco estão sendo orientados a ficar em casa. Nas unidades da empresa, há desinfecção constante e o uso de máscaras é obrigatório, entre outras medidas. Alegando “respeito à privacidade de seus empregados”, a mineradora não informou o número de trabalhadores infectados nas unidades da região (leia a íntegra da nota).
Nesta segunda-feira (15), o Conselho Indigenista Missionário afirmou que em maio houve uma explosão de casos de Covid-19 entre trabalhadores do Complexo Carajás, em Parauapebas. É o município mais próximo da entrada da TI Xikrin do Cateté para onde vão os indígenas quando precisam fazer compras ou sacar o Bolsa Família – e agora também o auxílio emergencial liberado pelo governo federal. “Eles buscam regularmente a cidade. Isso é um problema neste momento”, observa a promotora do Ministério Público Estadual Crystina Morikawa. A vara cível que ela comanda vem articulando com a prefeitura municipal ações de prevenção e redução dos riscos de contágio entre os Xikrin.
Agora, a prefeitura entregou cestas básicas para evitar que os indígenas precisem ir até a cidade comprar mantimentos. A Vale destinou kits com água sanitária, sabão em barra, sabonete e pasta de dente para os Xikrin, mas a ajuda chegou apenas na primeira semana de junho.
“Só depois da morte do cacique é que as autoridades começaram a agir, e não foi por iniciativa delas, mas da própria comunidade”, denuncia Yan Xikrin, referindo-se à morte do cacique Bep Karoti Xikrin, ocorrida em 30 de maio.
O Exército também entrou em campo e, com a Sesai, montou uma estrutura de atendimento emergencial em uma escola da terra indígena. Um redário foi instalado para isolar as pessoas contaminadas do restante da comunidade, e tubos de oxigênio foram trazidos para os casos mais graves.
A promotora Crystina Morikawa batalha para que seja possível a reabertura de outro espaço que poderia servir ao isolamento dos indígenas em tratamento: a Casa do Índio, mantida pela Vale S.A., mas fechada para reformas no final do ano passado e ainda sem perspectiva de reinauguração. É mais uma discussão que foi parar na Justiça, porque, enquanto os indígenas pedem a ampliação do espaço para atender melhor a população, a Vale insiste em apenas restaurar a estrutura já existente.
Medo de morrer fora da terra indígena dificulta atendimento
A morte de Topan Xikrin, no dia 10 de junho, é ilustrativa de outro problema que as equipes de saúde enfrentam para poder cuidar dos indígenas doentes. O idoso estava com saturação de oxigênio muito baixa e precisava ser tratado em hospital, mas resistiu até o fim ao traslado à cidade. “Está sendo difícil retirar os anciãos das aldeias. Eles ficam com medo de não voltar, principalmente depois que disseram que iriam enterrar na cidade os que morressem”, observa Ubirajara Sompré, da Sesai.
Quando foram confirmadas as primeiras mortes, em 22 e 23 de maio, de fato a primeira decisão da prefeitura e da Sesai foi determinar que os enterros deveriam ocorrer na cidade – mas o Ministério Público Federal interveio e garantiu que os funerais fossem realizados dentro do território indígena, seguindo as orientações de precaução para evitar o contágio.
Para os Xikrin, a ideia de um parente morrer sozinho em uma UTI é terrível. Na sua cultura, quando uma pessoa querida morre, o corpo é colocado sobre palhas de babaçu. As mulheres raspam a cabeça do morto e pintam seu corpo. Segundo Yan Xikrin, depois de um dia e uma noite chorando nos funerais, os familiares enterram o parente e se afastam da aldeia para viver o luto. “Geralmente, são cerca de 20 a 30 pessoas da família que vão para dentro do mato e ficam ali uns dois meses, sem contato com ninguém”, conta Yan.
Agora, com a pandemia se alastrando, vários outros grupos deixaram as aldeias em direção à mata, na tentativa de se protegerem da doença. Mas nesse caso o movimento gerou preocupação para as lideranças. “Meu receio é que vá alguém doente e acabe morrendo lá dentro, sem a gente ter conhecimento”, desabafa o jovem Yan.