Bem-te-vis desterrados

Por

Eugenio Jerônimo*

em 20.06.2020

São os bem-te-vis. Não os vejo, mas seu canto tem registro inconfundível. Não é preciso ter conhecimento de ornitologia para identificá-los pelo som. Nem mesmo carece ter intimidade com a roça para distingui-los sem vê-los. Qualquer menino urbano que nunca ensopou os pés de lama nem os sujou no polvilho das veredas reconhece-os ao primeiro pio.

Lá fora, continuam sua toada – não direi monótona, por gratidão – de uma nota só. Seria indelicado usar essa palavra que adquiriu sentido negativo. A plumagem é modesta. Dorso cinza, cauda e asas pretas, peito amarelo brilhante, pescoço e cabeça com listas brancas. Bem entendido, modesta só quando confrontada com espécies exuberantes como concriz, arara, tiê-sangue ou pintor-verdadeiro. De tamanho médio, seu porte não é dos mais graciosos. Mas devo a essas criaturinhas modestas a tranquilidade de dormir sem medo de perder a hora de me levantar. Sou freguês do seu serviço de despertar há pelo menos duas décadas, desde que vim morar neste apartamento. Só não sei o que ganham nessa relação de consumo.

Foi sua capacidade superior de adaptação que os fez migrar para a cidade, com o avanço contínuo do desmatamento. Seu menu é virtualmente plural e está aberto a novos itens de acordo com as circunstâncias. Podem tomar um café da manhã de insetos, almoçar frutas e jantar restos de comida de animais domésticos.

Pássaros metropolitanos, talvez alguns deles jamais tenham encontrado uma árvore para pouso digno e sono seguro. A população jogada na periferia pendura suas casas nos barrancos que ainda não foram alvo da especulação imobiliária. Eles têm o mesmo instinto. Improvisam seus ninhos na altura dos postes, nos recantos dos muros ou em qualquer suporte que possa sustentar talos, fiapos e gravetos entretecidos.

Às vezes, a natureza faz algumas concessões, apesar dos ataques que sofre, como nos presentear com esses bichinhos. Mas sua regra é a preservação. Por isso, jamais na cidade teremos por despertadores maravilhas do tipo do xexéu-de-bananeira, ave-intérprete, que imita com perfeição o canto de uma série de outras. Exclusivamente frugívoro, não tem como tirar da aridez do asfalto o seu sustento.

Ocorre-me – e agora preciso de ornitólogo para me informar qual a expectativa de vida das espécies – que talvez eu não seja devedor só de um casal de bem-te-vis, mas, ao longo de vinte anos, de gerações. E todas mantêm, sem alteração, o timbre e a precisão do despertador.

É hora de saltar da cama. Eles insistem. Os relógios, mesmo com toda tecnologia, podem se enganar, mas eles não. Pontualíssimos, certamente não conhecem a insônia, entram no batente sempre às 5 da manhã.

Reduzo a TV a rádio, tomo um banho automático ao mesmo tempo em que tento ouvir as primeiras notícias do dia, visto a primeira roupa que se mostra e bebo um café sem licença de me sentar.

Na frente do prédio, semeio numa bandeja grãos de ração, para gatos sem-teto. O casal de bem-te-vis está à espreita, mas guarda uma distância segura porque sabe que nasceu na condição de presa em relação aos felinos. Ofereço-lhes alguns grãos, mas, quando dou o primeiro passo em sua direção, eles voam. Sabem prever exatamente como agem seus predadores naturais e desenvolveram estratégia de defesa, mas ainda não são capazes de antever as atitudes do bicho-homem. Só nos céus estão seguros.

*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria). Escreve aos sábados.