A violência psicológica no âmbito da Lei Maria da Penha e o crime de lesão corporal

Por

Fernanda Moretzsohn e Patricia Burin*

Em 16.07.2021

A violência psicológica é sutil, quase silenciosa.

Contrariando o imaginário popular, a Lei Maria da Penha não é uma norma punitivista. Tanto isso é verdade que, em seu texto originário, não veiculava nem sequer um crime, apenas passando a fazê-lo em 2018, quando foi tipificada a conduta de descumprir medida protetiva de urgência (artigo 24-A).

A Lei 11340/06 é, em verdade, um microssistema de proteção, que visa ao enfrentamento da violência contra as mulheres. Para tanto, a própria lei reconhece cinco tipos de violência: física, patrimonial, sexual, moral e psicológica. Os crimes relacionados a essas sortes de violência têm de ser buscados em outros dispositivos legais. Assim, podemos associar à violência física as lesões corporais e o feminicídio, por exemplo; à violência moral, a injúria, a difamação, tipos previstos no Código Penal.

A violência psicológica talvez seja a espécie de violação dos direitos humanos das mulheres que menos encontrava ressonância em tipos penais. Felizmente, o legislador parece ter se atentado para essa questão, tendo tipificado a conduta de perseguição (artigo 147-A do CP) e a própria violência psicológica em si (temática ainda pendente de apreciação presidencial até a publicação deste artigo).

Não obstante tais inovações, a violência psicológica já era passível de criminalização como lesão corporal.

Ademais, cumpre esclarecer que a tipificação do crime de perseguição (artigo 147-A do Código Penal) não afasta o entendimento de violência psicológica como forma de lesão corporal. Os tipos penais tutelam bens jurídicos diversos: enquanto o crime de perseguição tutela a liberdade pessoal, a lesão corporal tutela a integridade física e a saúde da pessoa.

Nos termos da Lei Maria da Penha, a violência psicológica deve ser entendida como qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima da mulher, ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir, ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação (artigo 7º, II).

A violência psicológica é sutil, quase silenciosa. Não se evidencia como a violência física. Com frequência, nem mesmo a mulher vitimada tem consciência de que está sendo violentada, especialmente porque a violência psicológica tende a ser naturalizada socialmente.

Ocorre que a violência psicológica é tão capaz de ensejar danos à saúde da mulher quanto a violência física, sendo apta a deixar sequelas que podem durar por toda a vida da pessoa vitimada. No dia a dia das delegacias, é comum ouvirmos das mulheres em relacionamentos abusivos a verbalização de que as “torturas psicológicas” de que sofrem as estão adoecendo, que estão precisando de medicação para dormir, que desenvolveram quadros depressivos ou síndrome do pânico.

A juíza e pesquisadora Ana Luíza Schimidt Ramos [1] cita, em palestra proferida no Curso de Atualização no Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (PC por Elas — Acadepol/SC), dados de 2014 que indicam que, naquele ano, foram mais de 45 mil atendimentos em unidades públicas de saúde relacionados à violência psicológica. Menciona ainda que, naquele mesmo ano, mais de um milhão de mulheres, em pesquisa domiciliar, se reconheceu vítima de violência psicológica.

Todas essas mulheres carregam reflexos físicos das violências psicológicas que sofrem, sendo possível a configuração do crime de lesões corporais.

Nos termos do artigo 129 do Código Penal, configura o crime de lesão corporal a conduta de ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem. Saúde, segundo a Organização Mundial da Saúde, é um estado de bem-estar físico, mental e social. Não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade.

Ora, o silogismo é deveras simples: se o crime de lesão corporal se configura com a ofensa à saúde de outrem e se saúde inclui bem-estar mental, evidente que a ofensa à saúde mental decorrente da violência psicológica pode configurar crime de lesão corporal. O tipo do artigo 129 do Código Penal costuma ser associado à violência física, mas é plenamente defensável que violências de natureza psicológica sejam tipificadas como lesão corporal. Até porque, se o legislador utilizou a palavra “saúde” ao lado de integridade corporal, quer dizer que a lesão não se limita à integridade corporal (a lei não traz palavras inúteis).

A tese, entretanto, encontra certa resistência no mundo jurídico. Romper a associação entre lesão corporal e danos físicos é ainda um desafio. Isso porque o crime de lesão corporal é tido como crime não transeunte, isto é, é um delito que deixa vestígios e a prova da materialidade demanda que se evidenciem esses vestígios.

Em se tratando de violência física, a vítima é submetida a exame de corpo de delito e o laudo expedido comprova a materialidade delitiva. A lesão à saúde mental é bastante menos evidente do que um hematoma, mas não é impossível prová-la.

Nesse caso, a vítima deverá ser submetida a uma perícia psicológica. Haverá, tanto quanto na lesão à integridade física, um laudo pericial, mas de natureza psicológica, que deverá indicar indícios de que a vítima sofreu ofensa em sua saúde mental em decorrência da violência psicológica sofrida (v.g., reexperiência traumática, esquiva ou distanciamento emocional, hiperexcitabilidade psíquica)

Não se ignora que a demonstração da materialidade delitiva pode ser complexa. A prova, entretanto, é possível. E, dada a relevância do tema, é importante que os operadores do sistema de persecução penal estejam atentos para a possibilidade de, no caso concreto, ser configurado o crime de lesão corporal em decorrência da violência psicológica perpetrada no contexto da Lei Maria da Penha.

[1] Sugerimos a leitura da obra da pesquisadora citada: RAMOS, Ana Luisa Schmidt. Violência Psicológica Contra a Mulher: o dano psíquico como crime de lesão corporal, ed. 2ª , 2019, EMais Editora & Livraria Jurídica.

*Fernanda Moretzsohn é delegada de polícia no Estado do Paraná, pós-graduada em Direito Público e pós-graduanda em Direito LGBTQ+.

*Patricia Burin é delegada de polícia no Estado de Santa Catarina, mestra em Direito Constitucional e pós-graduada em Segurança Pública e Criminologia.

Artigo publicado originalmente no portal da Revista Consultor Jurídico.

Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: Diário do Nordeste.