Desigualdades, feminismo e teorias libertadoras: Mulheres que combinaram de não morrer

Por

Magda Barros Biavaschi e Marilane Oliveira Teixeira*

Em 20.07.2021

Conceição Evaristo, mineira, nascida em 1946, ancora sua produção literária no sofrimento e na opressão das mulheres negras. Em Vozes-mulheres, localiza essa saga nas mulheres da família: a bisavó, criança nos porões do navio negreiro, arrancada da terra natal, cuja voz ecoou lamentos de uma infância perdida; a avó, vítima de sistema perverso e compulsório, cuja voz ecoou obediência aos brancos-donos de tudo; a mãe, empregada doméstica que, no fundo das cozinhas alheias ou no caminho empoeirado rumo à favela, em meio à violência, ecoou baixinho o sentimento de revolta; Conceição, que ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome, traz a voz da filha que, recolhendo as vozes ancestrais, caladas, engasgadas nas gargantas, ouvirá a ressonância dos ecos da liberdade.

Esse poema remete ao cenário da Casa Grande de uma sociedade escravocrata e patriarcal, na qual o acesso à cidadania foi sonegado à grande maioria, herança dos tempos coloniais que acabaram inscritas, a ferro e fogo, na estrutura social, econômica e política do Brasil (Biavaschi, 2007). Mas se, por um lado, a saga de Conceição traz elementos que contribuem para que se compreendam as dores das desigualdades estruturais brasileiras que marcam seu processo de exclusão social, realidade que a pandemia da COVID 19 tratou de evidenciar e aprofundar, por outro remete ao tema da constituição do capitalismo e, nele, ao processo de inserção desigual das mulheres no mundo produtivo e ao trabalho como estruturador das relações sociais.

Marxismo, feminismo e teorias libertadoras 

O capitalismo é essencialmente desigualador. Na sua dinâmica, busca eliminar quaisquer obstáculos ao seu livre trânsito e, nesse processo, vai dissolvendo todas relações sociais onde não há diques suficientes para contê-lo (Belluzzo; Galípolo, 2019). Quanto às mulheres, o capitalismo constituído e a grande indústria alteraram de forma significativa sua posição econômica, separando as esferas produtivas e reprodutivas. Essa separação passou a ser funcional para o sistema econômico e social em formação, atribuindo às mulheres papel de reprodutoras de força de trabalho.

As primeiras lutas das feministas voltavam-se à extensão dos princípios da liberdade, igualdade e de acesso à educação, com pouca atenção à separação das esferas pública e privada. O reconhecimento dessa separação e sua relação com a produção e a economia como substrato que legitima a imposição de papéis sociais diferenciados para os sexos é uma das grandes contribuições das feministas socialistas do final do século XIX. Mas foi nos anos 1960 que o feminismo socialista introduziu o debate econômico como elemento central do desenvolvimento capitalista.

A constituição do capitalismo e a mercantilização possibilitaram que permanecesse invisível o processo cotidiano de reprodução da vida. Ao mesmo tempo, as mudanças na estruturação do modelo de família, visto como separado da esfera da produção, isolavam de maneira singular as mulheres em nova configuração da vida privada. Nessa caminhada, vai se conformando estrutura de hierarquia nas relações sociais em que a superioridade masculina se expressa em todas as dimensões da vida. Superioridade que passa a ser legitimada por um arcabouço legal e institucional que nega às mulheres o direito de se constituírem como sujeitos político e social (Teixeira, 2017). Com as mudanças introduzidas pelo capitalismo nas formas de organização da produção e do trabalho, alteram-se os padrões de relação, intensificando-se a exclusão das mulheres, cuja capacidade produtiva foi limitada ao campo doméstico ou aos baixos salários do trabalho não qualificado. Na transferência do trabalho da produção familiar para o assalariado, alterou-se o valor atribuído à capacidade produtiva do trabalho da mulher, cabendo à família apenas a porção do que consegue obter nas barganhas do mercado. Essa perspectiva das feministas socialistas trouxe elementos à análise crítica sobre a inserção das mulheres no mundo produtivo, ajudando a estruturar uma visão materialista sobre as desigualdades. Uma das formas na qual o marxismo se diferencia das teorias “burguesas” da sociedade é justamente no compromisso com o materialismo, ou seja, com a teoria fundamentada nas práticas humanas e sociais.

Para Marx (1966), o capitalismo é um sistema de relações de troca em que tudo, incluída a força de trabalho, tem preço. Todas as transações são transações de troca. Para a perspectiva feminista, além das relações de troca, o capitalismo se insere em um sistema de relações de poder. Essa análise do poder e das classes sociais é fundamental para compreender a opressão das mulheres. Embora se reconheça a crítica que o marxismo fez à economia de mercado, os primeiros autores, contudo, não alcançaram uma formulação que desse conta do impacto do trabalho de reprodução na dinâmica capitalista. Sem trabalho doméstico, os trabalhadores não se reproduzem e, sem trabalhadores, o capital não pode ser reproduzido. Para as feministas socialistas é central, para entender as contradições das relações entre mulheres e homens, definir o lugar do trabalho – e o trabalho das mulheres – na dinâmica da sociedade, da economia e das relações sociais, debate no qual emergem várias outras questões. E é a partir de Marx e Engels que, mesmo com críticas, estruturam a análise das raízes históricas da opressão das mulheres como ferramenta teórica importante para se entender as relações de poder e sua reprodução no processo de opressão e exploração.

As principais contribuições do marxismo para o feminismo são: i) desnaturalização da opressão das mulheres; ii)  método para compreender as bases materiais das relações sociais de desigualdade, exploração e opressão; iii) análise das origens da opressão das mulheres que, embora limitada em alguns campos, abriu perspectivas para aprofundamentos futuros; iv) compreensão da família como fenômeno social em evolução, estabelecendo ligação entre mudanças estruturais nas relações familiares e na divisão sexual do trabalho; v) ligação entre ideologia e interesses materiais e papel na reprodução das relações de poder.

Os debates feministas socialistas trouxeram contribuições decisivas sobre relações sociais de sexo e a compreensão do trabalho como estruturador das relações sociais, tendo papel primordial as reflexões de Danièle Kergoat e Helena Hirata sobre a centralidade do trabalho e a divisão sexual do trabalho na construção das relações entre mulheres e homens. E nas abordagens sobre a “consubstancialidade das relações sociais”, imbricando as relações sociais de sexo, de classe e de raça (Kergoat, 2009 e 2014), a elaboração feminista busca responder aos novos desafios teóricos a partir dos anos 1990, trazidos, em grande parte, mas não apenas, pela exigência de abordar as relações raciais e responder aos debates relacionados à orientação sexual (Hirata, 2017).

Reflexões para o Brasil

A assimilação contraditória dos avanços conquistados pelas mulheres e a retomada de ofensivas conservadoras deixam evidente que tais pautas e lutas não são apenas uma agenda específica que vai se agregando à sociedade. A desigualdade das relações sociais de sexo, a divisão sexual do trabalho, os processos de subordinação e opressão estão no coração dos sistemas sociais de dominação. A organização econômica e social do capitalismo que, na sua estrutura, inscreve as desigualdades e discriminações de raça, classe e sexo, encontra no Brasil condições favoráveis para se afirmar dada à herança escravocrata e patriarcal que marca seu tecido social. As atuais reformas liberalizantes, que investem no desmonte de direitos e garantias sociais, atingem grupos com menor poder de resistência, sobretudo as mulheres e, entre elas, as negras. Ao mesmo tempo, a retomada agressiva de propostas e valores conservadores pretende impor recuo nos padrões e relações sociais, com modelos tradicionais que ofendem o direito das mulheres sobre seu corpo e sexualidade. A articulação entre racismo, sexismo e desigualdade econômica se redesenha em cada momento histórico. Perceber as armadilhas do processo de reprodução é desafio permanente do feminismo para que vozes ancestrais, engasgadas nas gargantas, ressoem com ecos de liberdade.

*Magda Barros Biavaschi é desembargadora aposentada do TRT4. Doutora e pós-doutora em Economia Social do Trabalho pelo Instituto de Economia da UNICAMP. 

*Marilane Oliveira Teixeira é doutora em desenvolvimento econômico pelo Instituto de Economia da UNICAMP, mestre em Economia Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Bacharel em ciências econômicas pela Faculdade de economia São Luiz.

Artigo publicado originalmente no portal Justificando.

Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: Conceição Evaristo – Internet