As facetas do racismo no esporte e na vida

Por

Karen Luise Vilanova Batista de Souza e Robson de Oliveira*

Em 01.08.2021

“Sentimento de inferioridade? Não, sentimento de inexistência. O pecado é preto como a virtude é branca. Todos esses brancos reunidos, revólver nas mãos, não podem estar errados. Eu sou culpado. Não sei de quê, mas sinto que sou um miserável.”

Frantz Fanon

Recentemente no final da Eurocopa a população negra assistiu consternada mais uma página da história mundial do racismo. Três jovens negros, jogadores da Inglaterra, entraram em campo para baterem os pênaltis e assim garantir a vitória de seu país no campeonato. Lamentavelmente eles erraram, e o que se viu foi um desfile de ofensas: bananas, macacos,” voltem para a África!!”.

Ao contrário do que se possa imaginar, não houve qualquer surpresa na reação da torcida e de outros apreciadores do futebol, uma vez que que comumente comportam-se desse modo quando o sujeito negro não corresponde suas expectativas, não atende seus desejos, não cumpre a função para a qual se viu sentido em sua existência.

Uma das primeiras experiências de rejeição social das pessoas negras aparece por meio dos apelidos na escola e os efeitos dessas constantes agressões, principalmente quando não são repreendidas e contextualizadas, acabam por permear todas as áreas dessa vida humana, marcando subjetividades, que se vêm objetificadas e atacadas em seus desempenhos para todo o sempre.

O repertório de ofensas dirigidas à raça, principalmente em situação de um suposto fracasso individual, presta-se para demonstrar a superioridade dos sujeitos brancos, bem como a condição de animais dos sujeitos negros. Seguem-se à piada ou à ofensa, o riso, o ódio e o desprezo. E nessa dinâmica de hierarquização e objetificação não cabem afetos, fragilizam-se os sujeitos, o não pertencimento sobressai, assim como desejo de desistir.

O questionamento que se propõe é: se os erros fossem protagonizados por pessoas brancas a reação dos torcedores seria a mesma? Seriam elas assemelhados a animais? Ser-lhes-iam ofertados alimentos que os relacionassem a um determinado “irracional”? Seria sugerido seu retorno ao país de origem? Certamente não!

Em inúmeros episódios de fracasso no esporte quando protagonizados por pessoas brancas podemos perceber que é muito diferente o tratamento que lhes é dispensado por quem deposita grandes expectativas em seus desempenhos. Elas recebem o consolo e o conforto! São amparadas, fortalecidas, acolhidas, abraçadas, com carinho, amor e atenção. Inclusive, e diga-se que tudo corretamente, com apoio psicológico para superarem o trauma em decorrência do seu “fracasso”.

Mas podemos ir além: como reagiriam as torcidas se houvesse sucesso na cobrança dos pênaltis? Infelizmente, muito provável que a vitória fosse atribuída ao time. Ali os jovens dedicados, esforçados e talentosos jogadores não teriam feito nada além de suas obrigações enquanto profissionais representantes da seleção inglesa.

Nesse sentido, a vitória é coletiva. Por outro lado, quando é a derrota que se experimenta, a responsabilidade não é do grupo, não é da camiseta, não é do país, nem do time: a derrota é do negro/a, a quem deve ser dirigido o ódio e o desprezo, por frustrar desejos de diversão e deleite. São corpos que não performam! São apenas corpos! Afinal, como denunciava Fanon: “um homem negro não é um homem.”

Diante disso, a ele podem ser impingidas toda as formas de ódio e violência (o insucesso do negro gera repulsa, o do branco a empatia).

E assim, em todas as situações possíveis e imagináveis não há fair play, pois quando os erros e perdas são protagonizados por sujeitos negros não existe uma aceitação de forma tranquila e serena. Há um movimento para destilar raiva, ódio e externar distância e distinção entre nós (a responsabilidade pelo erro não é minha nem do meu grupo racial, a responsabilidade é do outro).

Nesse contexto, outra reflexão possível: Por que será que os jovens erraram o pênalti? Qual pressão experimentaram antes de entrar em campo? Quanto essa pressão foi determinante para o resultado que os fizeram ineficazes?  O que foi ponderado a eles antes do início da partida? Como eles entraram em campo sabedores que eram dessa responsabilidade?

Com efeito, há que se refletir sobre o quanto pessoas negras tão capacitadas travam em entrevistas, em processos seletivos nos quais teriam todas as chances de muito bem desempenhar e obterem êxito e aprovação. O motivo é evidente: a força da estrutura racista que pesa sobre suas mentes e seus ombros, fazendo com que sejam eliminadas antes mesmo de iniciar o jogo. Ele já está perdido desde o começo, porque as relações de poder e opressão já determinaram quem pode ganhar.

Obviamente, o indivíduo branco sofre pressão quando entra em campo. Contudo, aquela sofrida pelo negro é multiplicadas vezes superior.

Independentemente das caminhadas, quando entramos em qualquer espaço somos iguais: eu sou igual a você. Mas se eu erro, sou exterminado. Se você erra, é abraçado.

Enfim, lamentavelmente falamos aqui não apenas do jogo de futebol, mas do jogo da vida, no qual que todo dia uma pessoa negra sofre, padece e é exterminada por conta do racismo existente no país e no mundo.

As sociedades evoluídas, que dizem que o racismo é algo primitivo, na verdade movimentam-se para mantê-lo de diferentes formas e permanecer reproduzindo e perpetuando práticas adotadas ao tempo em que propalava que negros sequer alma detinham. E esse é mais um dos incontáveis episódios, cuja maioria sequer é reportada nessa estrutura perversa existente no país e no mundo. 

Assim é no esporte, assim é na vida!

Ficam as reflexões neste momento de união mundial pelo esporte em jogos olímpicos, pois precisamos estar atentos para que todas as pessoas possam exercer sua cidadania e escrever suas histórias em igualdade.

Há tudo de humano em todos nós!

*Karen Luise é juíza de Direito na 1ª Vara do Júri de Porto Alegre/RS.

*Robson de Oliveira é advogado do escritório Demarest Advogados.

Artigo publicado originalmente no portal Justificando.

Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.