Borba Gato, a história e o que a escola ensina

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 02.08.2021

Muitos monumentos e estátuas têm sido derrubados como forma de restaurar a História.

Para que serve a história?

Há quem diga que a história serve para que possamos analisar os fatos e não cometamos os mesmos erros do passado e a sociedade possa corrigir os rumos a serem seguidos, sobretudo em momentos de alternância de poder.

Heróis representados em estátuas são sempre representantes do poder que se alterna e que representam a força, a bravura e a valentia no sentido da conquista, do desenvolvimento. Parece até que faz parte do sentimento da população admirar o que comandou com espadas ou metralhadoras na mão. É o que fica no imaginário, o sentimento da proteção, da defesa de todos. É também o que fica do que aprendemos quando passamos pelo ensino básico, até pouco tempo. Alguma coisa vem mudando.

Mas parece que não é assim. Os heróis admirados se impõem mais pelo medo que provocaram em um determinado tempo, às grandes maiorias afastadas dos poderes. Era o caso dos escravos no império romano, que ruiu e deu lugar ao sistema de produção agrícola feudal, dos servos e vassalos no tempo do feudalismo, das pessoas escravizadas trazidas da África para as Américas na época do mercantilismo, antecessor do sistema capitalista e dos povos que conviveram e ainda convivem com as ditaduras modernas em vários países, a partir do século XIX.

Ricardo Costa, professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), em palestra sobre para que serve a história, afirma que “ao contrário do que definiram, (vários interlocutores) nossa sociedade cada vez mais é menos reflexiva, cada vez possui menos capacidade de refletir, de entender e de discutir a realidade. Isso acontece por se tratar de uma sociedade de consumo, de massa, de gente que cai no apelo fácil da leitura superficial, quando não da força da televisão, passatempos fúteis alçados à categoria de cultura. A crise pela qual passam as ciências sociais e o questionamento acerca da função da história em um curso de História, são provas contundentes disso”.

No Brasil e no resto do mundo, vários monumentos, estátuas, obeliscos estão espalhados em honraria aos heróis de uma época em que os processos de colonização eram feitos através de guerras, domínio das terras, aprisionamento e tráfico de pessoas, estupro de mulheres e roubo de crianças.

Nas Américas, para que acontecesse a colonização e a posse da terra pelos europeus, foi realizada, com a benção das igrejas católicas e protestantes, a matança generalizada das populações indígenas, originárias nesses continentes, embora houvesse a ação missionária ocupada com a tentativa de conversão e escravização dos mesmos.

As questões relacionadas às mudanças dos símbolos que nos foram deixados pela história das civilizações têm surgido neste momento em que a globalização permite uma visão mais avançada sobre o processo de colonização, desenvolvido pelos países da Europa, nas Américas, na África, e algumas regiões da Ásia, deixando um rastro de destruição, preconceitos, pobreza e desigualdade e, sobretudo, acumulação de riqueza por poucos em detrimento da vida dos que vendem a força de trabalho por pouco valor e outros que sequer conseguem renda para sobreviver.

Muitos monumentos e estátuas têm sido derrubados como forma de restaurar a história.

Muitos monumentos e estátuas têm sido derrubados como forma de restaurar a história. Ações propagadas pela mídia, sem foco definido. Até porque, a história segue com outros ingredientes. O que se mantém ao longo dos séculos é a dicotomia/exploração que permeiam as formas de vida entre opressor e oprimido.

Aconteceram no Iraque, com a queda de Sadam Hussein; na União Soviética, com a queda do muro de Berlim; em Portugal, contra o Salazarismo; nos Estados Unidos, contra os generais escravocratas.

A discussão que ora surge nos Estados Unidos contra o sistema de escravidão que durou mais de 300 anos nas Américas, e impactou a vida de gerações futuras, tem sido também um elemento impulsionador de atos contestatórios, como ao episódio do fogo ateado à estátua de Borba Gato, em São Paulo.

O fato é que infelizmente não se aprende com a história, com erros cometidos no passado, como forma de se ter uma sociedade melhor, moderna, porém com menos opressão, desigualdade e injustiça.

Para alguns especialistas no assunto, retirar os monumentos e estátuas seria “apagar a história”, pois são importantes para ensinar as pessoas sobre o passado, caracterizar o modo de vida de uma época. “Observar uma estátua é uma maneira efetiva de se aprender história? Ou as estátuas dizem mais sobre quem as colocou lá do que sobre o homenageado no monumento?” (Midia Ninja)

Outros pesquisadores falam que não há resposta fácil para essa questão e que historiadores deveriam aprofundar a discussão, incluindo a cultura e outros aspectos da ciência.

Chegando à União Soviética, numa viagem de estudo promovida pelo PCB, chamava a atenção as estátuas de Lenin por todos os lugares em que passávamos. Em todas as escolas, na entrada do prédio, nas salas de aula, nos auditórios. Em 1950, a União Soviética já havia se tornado um país com índice de alfabetização de quase 100%. Fundamental para um país que era feudal quando aconteceu a revolução socialista. No entanto, a doutrina socialista era hegemônica em todos os conteúdos tratados nas escolas.

Durante muitos anos, até que a ditadura do proletariado derivasse, igualando-se às outras nos seus erros, muitos adeptos do socialismo no mundo inteiro consideravam ser benéfico o exercício do poder do proletariado, que vencera a dinastia dos Czares. Não foi possível.

Cá para mim, tenho a impressão que a escola poderá muito contribuir para a formação das novas gerações, tratando da história de forma objetiva, descritiva, abordando o todo do modo de vida da população, sua reprodução social, não apenas através das datas consideradas importantes pelos feitos, pelo poder dominante.

Consta que até 1990, no Brasil, não se falava sobre racismo nos cursos de história. “Não temos estátuas de africanos, de indígenas no Brasil. Enquanto isso, tem muito mais estátuas de colonizadores, de generais, de ex-presidentes. Não temos estátuas que deem conta da nossa diversidade”. Sendo assim, segmentos da população não se sentem representados ao longo do processo histórico, incluindo suas contribuições para a formação cultural de um povo.

Durante muitas décadas, índios e escravos foram representados nas festas e comemorações escolares como parte de um folclore.

É preciso compreender que a reparação histórica impulsiona mudanças, a começar pela descolonização da educação básica, que tem sido negligente e em muitos países tem funcionado como órgão de controle do poder estabelecido

No Brasil, no período da ditadura militar imposta em 1964, houve uma mudança no ensino de História, cuja disciplina foi substituída por Estudos Sociais, sob controle da censura feita pelos órgãos de repressão.

Muitas gerações aprenderam que personagens como comerciantes de escravos, matadores de índios e praticantes de outros absurdos, eram homens bons, religiosos, cuidadores de suas famílias, e o seu trabalho era limpo pelo desenvolvimento do país. No entanto, tudo era feito com financiamento de grandes recursos, dinheiro sujo, e troca de poder.

Essa discussão também não é fácil em nosso país. São apenas 521 anos de história. Ainda convivemos quase diretamente com lideranças políticas, em estados e municípios, descendentes dos colonizadores e ocupantes das terras através das Sesmarias.

Por isso, a importância de políticas afirmativas, o reforço à laicidade do Estado, que vão estruturando caminhos para o debate e a formação de novos pensamentos.

A partir dos anos 2000, houve pequenos avanços no sistema de ensino, com a criação das leis 10.639/03 e 11.645/08, que obrigam o ensino da história africana, afro-brasileira e indígena no Brasil. Porém, foi apenas em 2018 que a Justiça decidiu verificar o cumprimento das mesmas, depois que denúncias foram apresentadas pelo movimento negro.

“A História instiga o indivíduo a questionar seu próprio mundo e a buscar maneiras de torná-lo melhor. É um repositório de experiências humanas que fornece uma compreensão real da interdependência entre sociedades. Inspira a reconhecer a importância da ética, da tolerância, da empatia, do acolhimento e valorização da diversidade. (Joelza Ester Domingues-Ensinar História)

Imagine: o que seria do Nordeste brasileiro sem as estátuas de Luis Gonzaga, meu Padim Padre Cícero, Dominguinhos, Lampião e Maria Bonita?

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.