“Um dia seremos livres e voaremos com nossas próprias asas”

Por

Nalida Coelho Monte*

Em 04.08.2021

O romance “Eu, Tituba Bruxa Negra de Salem”, da escritora Maryse Condé, é um daqueles livros que não podem deixar de ser lidos. Trata-se de narrativa ficcional – histórica que resgata a história verdadeira de Tituba, mulher negra e escravizada, condenada por bruxaria na cidade de Salem no ano de 1692. Como a historiografia tende a se interessar pouco pela vida de pessoas negras, o destino de Tituba permaneceu desconhecido até os dias atuais, e diante disso Maryse Condé apresenta um final alternativo para o destino da personagem.

Ao longo do livro Tituba nos mostra que o feminismo chegou para mulheres negras antes mesmo que ele pudesse ter sido nomeado e dividido, de modo didático, em ondas por mulheres brancas; Tituba experimentou o amor sem o peso da culpa que a moral cristã impõe às mulheres. Tituba amava tanto o amor que deveria existir a expressão “amar à Tituba”. Tituba era senhora do seu corpo: não queria ter uma filha – e não teve – para que uma menina, sob sua responsabilidade, não fosse subjugada pelo patriarcado cruel posto. Tituba reclama o seu lugar no julgamento de Salem e, ao fazer isso, nos revela os sofrimentos das prisões. Mesmo tendo sido condenada por bruxaria, Tituba nos faz perceber que o Satanás se escondia “nas dobras das capas de juízes e falava pela voz de juristas”.

Desde que li esse livro, em um exercício imaginativo, pergunto-me se o destino de Tituba poderia ser outro caso ela tivesse tido acesso a um julgamento imparcial ou à defesa, se em 1692, na cidade de Salem, existisse uma Instituição semelhante à Defensoria Pública. Passei a me perguntar quantas mulheres com a vida semelhantes à de Tituba batem às portas da Defensoria Pública diariamente, e qual a nossa responsabilidade, enquanto Instituição, sobre o destino dessas mulheres.

O racismo e o sexismo adentram à Defensoria Pública diariamente e se revelam sempre que nós, Defensores/as Públicos/as, visitamos penitenciárias superlotadas; quando realizamos audiências de destituição do poder familiar; quando atendemos famílias interrompidas por ações policiais; quando escutamos uma mulher em situação de violência doméstica, ou que tenha sofrido racismo obstétrico. O racismo genderizado se manifesta, inclusive, quando fazemos uma simples ação de alimentos, em que dinâmicas complexas – como a feminização da pobreza ou a solidão afetiva da mulher negra – se evidenciam.

O racismo arromba a porta da Defensoria Pública desde o primeiro minuto de nosso dia e, apesar de termos sido socializados em um país que tenta escamotear o racismo por meio do mito da democracia racial, não é preciso esforço para perceber que estamos inseridos dentro do patriarcado racista: basta estar no mundo e observar o mundo.

Se a Instituição deseja se colocar como antirracista é essencial que faça, de modo urgente, um chamado à ação. É preciso que todas as decisões políticas fundamentais da Defensoria Pública sejam tomadas considerando o racismo e o sexismo como eixos centrais.

Recentemente foi publicada pesquisa realizada pela ONG CRIOLA E FORUM JUSTIÇA que analisa as dinâmicas de reprodução e enfrentamento ao racismo nas Defensorias Públicas Estaduais. A pesquisa mostra que as Defensorias Estaduais são compostas quase que igualmente por homens e mulheres. A Defensoria de São Paulo, por exemplo, possui 340 homens e 387 mulheres. A maior parte das pessoas que compõem as Defensorias Públicas são brancas. A despeito das Defensorias Públicas possuírem em seus quadros muitas mulheres brancas, esse fato, por si só, não é suficiente para colocar mulheres no centro de tomada de decisões. Para se ter uma ideia, 77% dos Defensores Públicos/as Gerais são homens.

O que os dados da pesquisa evidenciam é que, em relação ao acesso à Instituição, é mais difícil superar obstáculos relacionados à raça que ao gênero.

Uma Instituição pouco democrática, em termos de composição, impacta a vida das pessoas que procuram a Defensoria Pública. Isso porque o universalismo dos sujeitos de direitos de onde partimos é insuficiente para a produção de respostas que se adequem à vida das pessoas que atendemos. Somos forjados a partir de uma formação jurídica tradicional e, como consequência, o sistema de justiça trabalha como construtor de respostas para sujeitos ideais, destituídos de raça e gênero.

Oferecemos, portanto, respostas pensadas para um padrão de normalidade correspondente ao homem branco.

Se a constituição de uma instituição pouco democrática pode ter como consequência a produção de padrões abstratos de respostas, é possível concluir que uma Defensoria que não é diversa pode, no limite, contribuir para o aprofundamento de desigualdades. Uma Instituição mais diversificada altera padrões de resposta oferecidos ao público que atende, e melhora o acesso à justiça.

Silvio Almeida, em seu livro “Racismo Estrutural”, argumenta que a desigualdade racial é causada não apenas pela ação individual de determinados grupos, mas também porque as instituições são hegemonizadas por grupos específicos, que usam mecanismos institucionais para impor seus interesses, de forma que “estabelecem-se parâmetros discriminatórios pautados na raça, gênero que passam a ser normalizados”, e funcionam como obstruções a políticas de ascensão de grupos minoritários.

As ações afirmativas, nesse contexto, são fundamentais porque, além de serem mecanismos de redistribuição de recursos, constituem-se como verdadeiro direito de reparação histórica. Essas ações têm o condão de provocar alterações na lógica discriminatória das instituições.

Além da implementação das cotas raciais, é essencial que as Defensorias Públicas possam efetivar outras iniciativas tendentes a tornar a instituição mais democrática. Nesse contexto, os Núcleos Especializados de Proteção e Defesa dos Direitos das Mulheres e o Núcleo da Diversidade e da Igualdade Racial da Defensoria Pública do Estado de São Paulo apresentaram ao Conselho Superior da Defensoria Pública de São Paulo projeto de Deliberação visando: (a) garantir participação de mulheres, negros/as e LGBTQIA+ em bancas para concurso de ingresso na carreira de Defensor/a Público/a; (b) incorporar a perspectiva de raça e gênero e diversidade sexual nas matérias do concurso de ingresso na carreira de Defensor/a Público/a; (c) participação em cursos de capacitação com conteúdo de raça e gênero como requisitos para inscrição no concurso de promoção por merecimento.

A primeira alteração sugerida decorre da conclusão de que uma banca de concurso plural é fundamental porque proporciona o “rompimento de autorizações discursivas”. A alteração pretendida parte do pressuposto que o processo de produção de conhecimento é político, e tende a legitimar como científicas as produções de homens brancos. É inegável, ainda, o efeito simbólico positivo da composição plural das bancas, ao apresentar sujeitos historicamente infantilizados e objetificados na posição de produtores de conhecimento.

As duas outras alterações propostas se relacionam com a melhoria da assistência jurídica prestada à população, já que que atendemos, em sua maioria, mulheres negras.

Não bastasse isso, a capacitação em gênero e raça reflete um compromisso moral e ético de ressignificação de identidades raciais e de gênero a ser feito por cada um de nós. A ressignificação dessas identidades envolve modificações de estruturas econômica, política e jurídica, mas também se relaciona com práticas e compromissos individuais.

Ou seja, enquanto Defensores/as Público/as, a responsabilidade pela alteração de padrões de julgamentos como o de Tituba se inicia dentro de nossa Instituição e deve ser compartilhada por cada um de nós. Esse compromisso – de construção de uma Instituição mais igualitária e que apresente resposta para sujeitos reais- não pode ser responsabilidade das poucas pessoas negras que a compõem.

É chegado o momento de nos comprometermos e isso significa assumir alguns compromissos, que devem ser formalizados. É preciso que sejam criadas instâncias de governança para responder por estes pactos institucionais. É preciso, por fim, que renovemos diariamente o nosso compromisso pedagógico de enegrecer a Defensoria, de torná-la mais colorida, para que pessoas como eu e como Tituba possamos ser completamente livres e possamos voar com as nossas próprias asas.

*Nalida Coelho Monte é defensora pública do Estado de São Paulo, coordenadora do NUDEM/SP

Artigo publicado originalmente no portal Justificando.

Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: Maryse Condé – Trace TV / Arte: Justificando